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terça-feira, maio 03, 2022

Banho de urna para o Brasil ficar no purgatório




Por Paulo Fábio Dantas Neto* (foto)

Sei que o título desta coluna, embora fale de urna, não é sedutor, pelo déficit de esperança que aparentemente carrega. De fato, observado o que ocorre e o que pode ocorrer na política brasileira, vejo que o melhor futuro do presente é ser um presente contínuo. Explico: a terra mais firme à vista é uma ilha ameaçada por lavas de vulcão ainda durante um tempo indeterminado. Mas ilha ao menos um pouco mais distante da porta do inferno, onde nos encontramos agora. A expectativa otimista e, ao mesmo tempo, razoável é que haja eleições normais, que o resultado do pleito presidencial se oponha ao de 2018 e que ele prevaleça contra ações golpistas, que já se encontram em fase avançada de testes. A seguir tentarei argumentar que esse pouco não é só mais do mesmo. Portanto, deve nos incitar a agir. Dentro dos estreitos limites em que o Brasil respira, é um horizonte esperançoso, sem ser delirante.

Começo contando como assisti Gilberto Gil, nosso mais recente imortal, apresentar-se, na última sexta-feira, 29, na Concha Acústica do Teatro Castro Alves. Show a ser guardado na memória. Primor de tempestividade política sem pronunciamento que a formalizasse. Escolheu a dedo, para o começo, um repertório que a maioria da plateia ouviu e cantou sentada, o que já foi – tratando-se de Gil, cantando na Bahia – um sinal de que a noite não seria trivial. Quem tem mais de 60 anos, mais perto ou além dos 70, ouviu e viu o artista como se sua voz ainda tivesse a potência exortadora dos seus vinte e poucos anos. Tempo de sombras, então desafiados, agora evocados por Gil, cantando como quem dá um recado. Esse começo durou sete ou oito músicas, o introito acabou e ele subiu ao palco para valer. A comunicação direta com o momento coletivo mostrou aquele senhor artista cheirando a talco compartilhando com o seu público de todas as idades, agora de pé, o desejo de ver o inferno fora daqui! Nesse grito não havia crença nem programa, apenas desejo, necessidade e vontade titânicos de alívio do momento opressivo.

A conexão com o olê, olê, olê, olá de Lula pediu do artista apenas o dedilhar de alguns acordes para embelezar o coro. A catarse durou segundos porque Gil nem aí cedeu ao discurso e retomou seu script, sem alimentar ilusões de que outra coisa poderia ser feita ali. O Brasil não é simples assim. A sequência do repertório contrariou o que ultimamente virou óbvio. Em vez de alusões reiterativas a pautas identitárias, do alto de sua autoridade musical e moral o imortal mandou, com senso de alteridade, tal qual um Mandela tropicalista, avisos políticos prudenciais também a seus irmãos negros. Sacou Ary Barroso e Luiz Peixoto para exaltar o compasso da mulata “luxo só”, pela letra um compasso brasileiro como nenhum. Em seguida Sarará miolo, hino à afirmação, explicando antes que se trata de alusão a “raças novas”, que surgiram no mundo atual em substituição às antigas. Por qual via, senão a mistura?

No subtexto do show não tem desvio de foco para construções ideológicas, bola de cristal ou retrovisor. A inspiração é o Brasil, o todo diverso que é agora. Quer o inferno fora daqui, mas sem promessa de céu (tomara que Lula ouça seu ministro!). Nem simpatizantes da ‘terceira via” podem reclamar, ainda mais após os novos revezes, sofridos na véspera, nos entendimentos em busca de um jeito de subir no palco eleitoral principal. Cidadãos de boa vontade, majoritários ou não, dotados de senso de perigo, saíram da Concha em harmonia, aliviados por um tipo de esperança que só pode vingar em sintonia com as urnas.

O show da política real é mais nuançado. Há algumas semanas admitia-se haver dois scripts alternativos para se opor ao de Bolsonaro. Da esquerda vinha a aposta na polarização para resolver a eleição no primeiro turno. Da oposição mais ao centro e à direita a ideia de que uma candidatura agregadora desse campo no primeiro turno poderia enfraquecer Bolsonaro ao deter seu crescimento no amplo eleitorado antipetista. Ambos os caminhos têm racionalidade para além do autointeresse dos seus formuladores.

O potencial mobilizador do primeiro caminho mostra-se claramente em ambientes sociais que lhe são previamente simpáticos, como o do público da Concha Acústica. Mas tem força argumentativa positiva também em todo ambiente convictamente avesso a viradas de mesa. Sim, resolver tudo no primeiro turno dificulta o golpismo. Tentar deslegitimar eleições das quais dependem também deputados, senadores e governadores será certamente mais difícil e por isso quem o tentar correrá mais risco de isolamento. Se há um pré-candidato cujas intenções de voto beiram o necessário para vencer no primeiro turno é intuitivo pensar que o caminho menos arriscado é lhe direcionar novos apoios para atingir esse necessário. Raciocínio que só pode ser questionado se houver restrições de ordem política. E há, mas nesse ponto o apelo ético-moral à unidade contra o fascista soma-se ao argumento pragmático para reforçar a tese. O apelo tem força para interceptar o caminho prático da terceira via, mas deixa irresolvidas as restrições políticas, exacerbadas, em alguns momentos, na campanha de Lula.

O perigo, diz a lógica do segundo caminho, é a estratégia polarizadora ganhar a parada da unidade da oposição, mas ceder eleitores antipetistas ao adversário principal, de modo a configurar um empate técnico em contexto de radicalização. Desse risco nasce um contra-argumento também racional: sepultada de vez a terceira via, Lula seria um caminho sem volta para o conjunto dos democratas. Equivale a partir sem plano B para uma batalha sangrenta contra um adversário poderoso e montado em inclinações concretas de um eleitorado que, em seguidas eleições, demonstra atitude conservadora. Calça de veludo ou bunda de fora, os democratas poderiam, ao final, lamentar não ter havido uma candidatura mais à direita capaz de conter ao menos em parte o voto útil no extremista, sem impedir um entendimento com Lula no segundo turno. Esse lamento levaria a censurar a cegueira gulosa da esquerda ao ajudar a matar a terceira via por receio de que ela vá além do script e tire o capitão da disputa, diminuindo as chances de vitória final dessa esquerda. O inventário de culpas é uma teia. Pela lógica do primeiro caminho surgirão lamentos opostamente simétricos de que se perdeu por um triz uma guerra binária que poderia ser ganha e acusarão, mais uma vez, pelo fracasso, quem foi para Paris.

A falta de uma coordenação política de alto nível operando entre os dois campos de oposição já é, a essa altura, o que há de mais concreto e relevante a lamentar. Ela permitiria reconhecer os elementos de razão existentes em ambos os caminhos preconizados, evitando a teia de acusações mútuas que alvejam o PT como partido fechado ao diálogo e perdido entre atavismos dogmáticos ou populistas e os partidos e lideranças do centro como agentes de uma pequena política adesista por vocação e/ou instrumento de grandes interesses econômicos. Um oceano de preconceitos mútuos que, não sendo mediados e contidos por uma coordenação de grande política podem, no limite, facilitar a insólita reeleição de um inimigo explícito do estado democrático de direito e candidato a algoz da Constituição. Ou seu sucesso numa virada de mesa contra a consumação ou mesmo simples iminência de resultado eleitoral adverso.

Explicava-se mais facilmente a ausência dessa coordenação democrática lá em 2018, quando esses dois campos ainda estavam apartados pelo contexto do impeachment. Teria sido salutar para a democracia se aquelas eleições houvessem sido o terreno de justificação e disputa de duas teses: a do impeachment como golpe ou como solução para o país e a democracia. O contexto em que ocorreu a interrupção do mandato de Dilma Rousseff, em que a extrema-direita ainda não era um fato de poder, sugeria às forças políticas defensoras das duas teses apresentarem diagnósticos explicativos daquela crise e soluções para ela, dentro dos marcos de compromissos com a democracia. Inclusive, o lado que havia vencido a batalha de 2015/2016 dispunha de um programa de governo em curso para calçar sua posição. Como sabemos, apenas a versão do golpe se apresentou na campanha. Hoje o campo do chamado centro liberal-democrático colhe frutos da sua pusilanimidade política face a investidas então perpetradas pela Operação Lava-Jato, que o levaram a trocar sua unidade por um salve-se-quem-puder, erro estratégico fatal, pelo qual cedeu protagonismo à extrema-direita responsável pela devastação que aí está.

Mais complexo é entender como a ausência de coordenação democrática ocorre até aqui, após quase quatro anos de pressão autoritária desestruturadora do Estado e desestabilizadora da ordem democrática. Impossível realizar essa discussão hoje sem acirrar ânimos e reabrir feridas que precisam ser, respectivamente, acalmados e fechadas no interior desses dois campos políticos imprescindíveis para a reconstrução de pontes que restabeleçam o trânsito político e garantam a continuidade das instituições. Sem essa via comum é falso e altamente sugestivo de estelionato eleitoral qualquer partido ou candidato(a) falar em plano de governo, saídas para a crise e projetos para o país.

Em vez de se fazer inventário de culpas, que se examine a realidade. Daqui a três semanas, no máximo, estará resolvido se ainda haverá alguma terceira via que possa pronunciar esse nome ou se será definitiva a opção que se desenha, nos partidos e no eleitorado, pela polarização sem plano B. Se não houver agregação já, entre MDB, PSDB e Cidadania, realizada sem fechar portas a um entendimento objetivo entre esses partidos agregados e o PDT de Ciro Gomes, no sentido da admissão mútua de uma possível agregação maior mais adiante, o desenho já será obra.

Certamente essa afirmação que faço será tomada por retardatária, diante da profusão de análises que já decretam, ao menos, a morte cerebral da terceira via. O tratamento do tema pela crônica política já passou do ceticismo ao deboche e já se instalou uma temporada de caça aos culpados. Os partidos e políticos do centro, flagrados nesse iminente fracasso, apontam para a sabotagem realizada pelos dois polos. Quem se situa no campo da esquerda aponta para interesses pequenos (personalistas e fisiológicos) supostamente predominantes naqueles partidos. Uma incursão a fatos que se desenrolam há mais de um ano mostraria que os dois fatores estiveram e estão presentes. Mas não é o caso aqui, até porque tal inventário é uma pauta que se assemelha a uma discussão sobre a quadratura do círculo.

Nada disso importa muito, não importa mais agora, ou não importará logo mais. É uma platitude dizer que os polos principais atuaram para impedir a terceira via. É da sua natureza fazê-lo, não há razão para espanto porque não se trata de irracionalidade, mas de estratégias cuja eficácia - para os atores que as praticam e /ou para o país - só poderá ser melhor avaliada depois de outubro. Por outro lado, lamentar a falta de “grandeza” dos políticos atuais é chover no molhado. Essa avaliação tem sentido moral, mas não elimina o seguinte fato: do mesmo modo que, numa democracia, um programa eleitoral, ou uma candidatura, só será, efetivamente, um bom programa ou uma boa candidatura se puder obter uma aceitação relevante por eleitores reais, também uma prescrição de atitude política só poderá ser, efetivamente, uma boa prescrição se for praticável pelos políticos e partidos reais. Há aí, claro, uma diferença, porque enquanto os eleitores não podem nem devem ser mudados, elites e partidos podem sim. Mas a experiência das democracias mostra que essas mudanças não se dão de modo abrupto. Para serem efetivas e não desastrosas (como a emergência da “nova política” entre 2016 e 2018) elas precisam deslizar no tempo e interagir com a tradição política, no âmbito de instituições permanentes.

No caso da novela da terceira via, o tema da “grandeza” é recorrente, mas talvez esteja colocado de um modo que privilegia o ângulo moral quando a deficiência decisiva de toda a elite política (não só dos políticos da terceira via) é na capacidade estratégica, que não quer dizer escassez de inteligência ou de “espírito público”. Melhor dizendo, o problema liga-se à dinâmica da política atual, que exige de políticos “normais”, agilidade mais remetida ao plano tático. Correr ao encontro de uma opção populista é caminho menos complexo, logo, preferível. A ausência de coordenação do conjunto do campo democrático parece ser uma das mais eloquentes evidências dessa limitação.

Enquadrada assim, a hipótese de agregação de um campo político centrista como terceira via não poderia ser imaginada como derivação direta de crenças ideológicas ou apenas como imperativo de compromissos estratégicos com a democracia, mas na medida em que correspondesse a uma boa compreensão dos próprios interesses dos partidos que a comporiam, no sentido desses atores verem convergências entre esses interesses e o objetivo de fornecer ao eleitorado, em nome, aí sim, de valores democráticos, uma opção, ao centro, de oposição a Bolsonaro.

Dos quatro partidos que se mantinham na mesa até essa semana que finda, o Cidadania, o menor deles, resolveu esse problema de algum modo, negando espaço ao quadro que desejava ser pré-candidato. Isso colocou o partido em posição de mediar entendimentos entre os demais. Porém, há um limite, porque precisou formar uma federação com o PSDB, o que atrela a esse último a sua posição final. Caso oposto é o do União Brasil, que equacionou a média de seus interesses (inclusive junto ao governo federal) de modo conflitante com a agregação. Daí se afastou, enfraquecendo, sobremodo, a articulação. O PSDB e o MDB ainda não concluíram seus processos em relação à hipótese de agregação. Passos intermediários que esses partidos deram são responsáveis por não se descartar ainda essa hipótese.

No caso dos tucanos, a unificação formal (a real é outra conversa) em torno do nome do ex-governador João Dória, vencedor das prévias internas, parece ter equacionado, provisoriamente, um problema de sobrevivência do partido e, ao mesmo tempo, deixou a suposta aliança com um problema a menos, que era a disputa entre Dória e Eduardo Leite, no bojo da qual chegou a se cogitar judicialização. Mas é preciso ver o que Dória fará com essa oportunidade que o partido lhe deu. Se vai usá-la para fazer o gesto decisivo de viabilizar a aliança com os outros dois partidos ou se para prosseguir em seu voo solteiro testando os limites do seu partido, entre a resignação e a rebelião.

Já o MDB, criou um relativo colchão de proteção à pré-candidata senadora Simone Tebet como a contradizer as apostas que se faz na sua inviabilização pelos interesses regionais que, supostamente, decidem a sorte do partido. Essa solução tem também, como no caso dos tucanos, a lógica de evitar o estilhaçamento do partido, com a diferença de que o nome de Tebet tem fluxo livre nos outros dois partidos a ponto de hoje ser reconhecido (embora não declarado para esperar o gesto de Dória) como a única hipótese de unificação. A ver, no entanto, se o núcleo da direção nacional do MDB será capaz de fazer valer essa confluência entre o interesse partidário e a necessidade política de agregação do campo centrista, ou se prevalecerão tendências centrífugas que, se impedirem a visibilidade nacional do partido, provavelmente o farão diluir-se na poeira deixada pela marcha acelerada do centrão.

Tudo já foi dito nesses meses sobre a terceira via. Resta aguardar e voltar os olhos para a disputa principal, sugerida pelos fatos. Depois de um momento de hesitação, Lula parece ter voltado a fazer política mais ampla e saiu à caça de aliados. Mas Bolsonaro segue, como se sabe, encurtando a distância que os separa nas pesquisas. De modo evidente saiu do isolamento político e usa isso para se articular, como sempre, para enfraquecer as instituições com vistas ao confronto final que planeja ter com elas.

Se confirmado o descarte de qualquer plano B, não só o capital eleitoral do PT e da esquerda estará em jogo com a candidatura de Lula. Estará sendo jogado, também, o futuro da democracia e das regras do próprio jogo. No vácuo de coordenação política, já é quase certo que prevalecerá, como opção excludente, a tática do embate direto entre caminhos também excludentes. Esvaindo-se a hipótese de uma candidatura única, ou mesmo de duas, que constituíssem um campo moderador e qualificador do

debate com cada um dos lados principais, esta promete ser uma eleição disputada voto a voto, tête-à-tête, com alto grau de radicalização, em clima de segundo turno, talvez sob violência civil.

Essa realidade é que justifica o título pouco sedutor da coluna. Tomarmos um banho de urna em outubro será um remédio providencial para as dores e medos do país. Só isso constitui boa esperança. Mas ainda teremos que lutar por esse banho. No palco do embate será preciso acender continuamente o fogo eterno que emana de valores da civilização, para exorcizar a violência e a delinquência que se arremeterá contra as eleições. A união cívica é o mote, como ficou evidente na plateia de Gil.

Sem ilusões, porém. Um dos subprodutos da polarização sem plano B é que ela permanecerá radical após as eleições. Ainda que o golpismo seja vencido também no pós-pleito e os vencedores tomem posse, organizar e fazer funcionar um governo não será nada parecido com um passeio. Muita gente, durante esses quatro anos, acostumou-se ao desgoverno e descobriu que pode tirar proveito dele. Gente que não quer mais aceitar limites aos seus desejos egoístas e passou a chamar esse páthos de liberdade.

Eis aí a imagem do purgatório como o nosso melhor cenário possível. Ele pode se tornar comparativamente até animador, se pensarmos no que ocorrerá com o Brasil se, com a reeleição do atual presidente, ultrapassarmos o umbral do inferno. Por isso, a mornidão das expectativas de futuro não justifica subestimar a importância vital do banho de urna. Gilberto Gil está duplamente certo ao incentivá-lo e ao concentrar as expectativas na exorcização do inferno. Valerá o ingresso, como valeu o da Concha. O futuro será pauta do longo prazo se, no médio, o país não estiver espiritualmente morto.

*Cientista político e professor da UFBa.

O papel do Supremo na democracia - Editorial

 




STF está sob ataque. Os cidadãos precisam entender o que está em jogo quando isso acontece e por que defender a instituição é o mesmo que defender a liberdade e a paz social

O Supremo Tribunal Federal (STF) está sob ataque. Real e simbólico. Não há outra forma de descrever as ações hostis e o desrespeito a decisões da Corte por parte do presidente Jair Bolsonaro e de parlamentares e lideranças do Congresso. O momento é gravíssimo. O País não assistia a uma afronta tão desabrida à instância máxima do Poder Judiciário desde o conflituoso mandato do presidente Floriano Peixoto (1891-1894). O “Marechal de Ferro” não era um democrata e fazia pouco-caso da tripartição dos Poderes da República e do sistema de freios e contrapesos. Assim como Bolsonaro.

Os cidadãos precisam ter em conta o que está em jogo quando o Supremo é atacado, seja por meio de ameaças explícitas ou veladas a seus ministros, servidores e familiares, depredações de suas dependências físicas ou pelo descumprimento puro e simples de suas decisões. Em outras palavras: é preciso entender qual é o papel de uma Corte Suprema na democracia e por que defender a instituição é o mesmo que defender a manutenção das liberdades civis e da paz social.

A Constituição, em seu artigo 102, delega sua guarda ao Supremo. Do ponto de vista prático, “guardar” a Constituição significa interpretar o seu texto e ter a palavra final diante de conflitos em torno de nosso pacto social. Quando o Supremo é desqualificado como última instância com poder para dirimir esses conflitos e pacificar a sociedade, rui a própria ideia da Justiça como um avanço civilizatório. A partir daí, vale tudo, não há mais limites. Comandos legais correm o risco de perder valor. Em casos extremos, cidadãos podem olhar para esse processo de deslegitimização do Supremo – liderado por altas autoridades da República, que deveriam servir como modelos de cidadania e respeito às leis – como uma espécie de autorização tácita para resolver suas contendas particulares da forma que bem entenderem, inclusive pela imposição da força bruta.

Nas noites em que consegue dormir, Jair Bolsonaro decerto sonha com esse ambiente caótico, beirando a distopia, em que a força até mesmo das armas prevalece sobre o diálogo e as leis. Uma sociedade conflagrada, sem um “árbitro” reconhecido por todos como a autoridade apta a “guardar” as regras do jogo, é tudo o que o presidente da República quer para exercitar seus delírios de poder.

Não se pode perder de vista que a campanha de difamação do Supremo capitaneada por Bolsonaro mira a desqualificação do Poder Judiciário, especificamente do Tribunal Superior Eleitoral, como garantidor do resultado das eleições de 2022, que Bolsonaro não reconhecerá caso seja derrotado. O presidente teve a audácia de pugnar até por uma “apuração paralela” do resultado das urnas pelas Forças Armadas. Isso não é autorizado pela Constituição nem tampouco é atribuição dos militares. Logo, ao atacar o guardião da Constituição, Bolsonaro pavimenta o caminho para impor as “leis” que lhe derem na veneta.

Para Bolsonaro, o arranjo institucional ideal seria o modelo pré-Revolução Americana, quando o Judiciário, antes do advento da Supreme Court, era uma espécie de anexo do Executivo. Mas nem é preciso ir tão longe no tempo. Bolsonaro já se contentaria em ver no Brasil a mesma submissão de juízes ao chefe de governo que é vista hoje em países como a Hungria e a Venezuela.

Por sua vez, o Congresso, que deveria cerrar fileiras em defesa do Estado Democrático de Direito, toma parte no conflito com o Supremo por ver no Judiciário, tal qual Bolsonaro, um anteparo às suas investidas sobre o Orçamento da União. Jamais os parlamentares se refestelaram tanto com recursos públicos como agora. Cobrados pelo Supremo a dar transparência às emendas de relator, base do “orçamento secreto”, os presidentes das duas Casas Legislativas ignoraram olimpicamente a decisão emanada do outro lado da Praça dos Três Poderes.

A sociedade brasileira precisa se erguer contra esses ataques à autoridade do Supremo. Errando ou acertando em suas decisões, um STF íntegro do ponto de vista institucional é o último refúgio antes da barbárie.

O Estado de São Paulo

Ataque em falso - Editorial




Lula e Bolsonaro investem contra teto de gastos, enquanto problema é o déficit

Se há um tema que parece unir os dois líderes nas pesquisas para a eleição presidencial é o teto inscrito em 2016 na Constituição para os gastos do governo, atacado tanto por Luiz Inácio Lula da Silva (PT) quanto por Jair Bolsonaro (PL).

Ambos pregam o relaxamento do ditame legal na crença equivocada de que ele limita a ação do Estado —quando os limites já estão impostos há tempos pelo excesso de endividamento público.

Não é novidade. No ano passado, a gestão Bolsonaro provocou abalo na credibilidade da política fiscal ao recalcular o teto e promover um calote em dívidas judiciais, o que viabilizou a criação do Auxílio Brasil e também o aumento desmesurado das emendas parlamentares ao Orçamento.

Não surpreende, assim, que o mandatário queira mudanças, convenientemente a serem discutidas apenas após as eleições. Para ele, o teto impede o crescimento dos investimentos e precisa ser revisto.

A justificativa, sem sentido, seria a de que existe um excesso de arrecadação, "na casa de R$ 300 bilhões", que não pode ser usado na infraestrutura. Tal sobra, na realidade, inexiste, pois o Tesouro Nacional ainda será deficitário em R$ 66,9 bilhões neste ano, de acordo com a última projeção do Ministério da Economia.

Para afastar o risco de descontrole financeiro, o governo deveria gerar superávits primários (excluindo os gastos com juros) de pelo menos 2% do Produto Interno Bruto, em um ajuste adicional próximo a R$ 200 bilhões.

A mesma linha inconsequente é seguida por Lula. Com retórica demagógica, o cacique petista diz que o limite aos gastos prejudica a área social e é apenas um meio de para garantir o interesse de rentistas, credores da dívida pública.

É desanimador que o presidenciável não valorize sua própria experiência no primeiro mandato, quando manteve gestão austera do Orçamento e favoreceu a queda dos juros e o crescimento.

Não existia o teto de gastos na época, e tanto receitas como despesas cresceram aceleradamente. Mas ao menos havia responsabilidade em manter saldos nas contas para estabilizar o endividamento.

Os cuidados, porém, foram sendo abandonados —primeiro, de modo justificável, como reação ao impacto da crise global de 2008; depois, no governo Dilma Rousseff (PT), por motivação política e ideológica, com o agravante dos embustes na contabilidade pública.

O teto hoje vigente não precisa ser tido como um dogma, obviamente. Trata-se, isso sim, de um mecanismo que permite alguma perspectiva de reequilíbrio gradual das contas públicas, coisa que qualquer governo, à esquerda ou à direita, terá de oferecer ao país.

Folha de São Paulo

O que está por trás de nova epidemia de dengue no Brasil




Cidades com incidência mais alta de dengue no momento estão espalhadas por Centro-Oeste, partes de São Paulo, Paraná e Santa Catarina

Foco na pandemia de covid-19 é um dos fatores por trás de descontrole nos casos de dengue

Por André Biernath, em Londres

Do início de janeiro a 23 de abril deste ano, o Brasil contabilizou 542.038 casos prováveis de dengue e 160 mortes pela doença. O volume de casos nesses poucos meses do ano chegou perto do total de casos prováveis de dengue registrados no país em 2021, 544.460.

Os números, disponíveis no último boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, revelam um aumento de 113,7% nas infecções por esse vírus, transmitido pela picada do mosquito Aedes aegypti, em relação ao mesmo período de 2021.

Em alguns locais do país, a situação é pior: no Centro-Oeste, o crescimento em comparação com o ano passado foi de 253,8%. Até o momento, a região registrou 920 casos por 100 mil habitantes — em segundo lugar aparece o Sul, com 427 casos por 100 mil.

Entre as cinco cidades mais atingidas, as duas primeiras estão no Centro-Oeste: Goiânia (31 mil casos) e Brasília (29,9 mil). Completam a lista Palmas (9 mil), no Tocantins; São José do Rio Preto (7,4 mil) e Votuporanga (6,8 mil), ambas em São Paulo.

"O que se observa neste ano é uma atividade expressiva da dengue em algumas partes do país, em particular no eixo que vai do Tocantins até Santa Catarina, passando pelo Centro-Oeste e pela porção oeste de São Paulo", interpreta a bióloga e epidemiologista Cláudia Codeço, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz).

Mas o que está por trás desse cenário? E o que pode ser feito para combatê-lo? Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil explicam que uma série de fatores combinados contribuíram para o aumento da dengue justamente neste período.

Os ingredientes de uma epidemia

"Tivemos um clima especialmente favorável à dengue neste ano, com chuvas intensas e prolongadas", lembra Codeço.

Desde o final de 2021, quando começou o verão, várias cidades brasileiras registraram muitas tempestades, relacionadas a fenômenos como o La Niña e as mudanças climáticas.

Para o Aedes aegypti, as chuvas são sinônimo de água parada, local onde os ovos do mosquito eclodem e as larvas se desenvolvem até alcançarem a fase adulta.

"Geralmente, quando chega o mês de dezembro e começamos a notar uma grande concentração do Aedes, já dá para prever que março e abril vão ser ruins, com muitos casos de dengue", observa o infectologista Celso Granato, diretor do Fleury Medicina e Saúde.

Mas, na virada de 2021 para 2022, as projeções foram atrapalhadas por outras duas crises de saúde.

Nessa mesma época, o Brasil enfrentou uma epidemia de influenza H3N2, que causou um aumento importante de casos de gripe, e o espalhamento da variante ômicron do coronavírus, por trás de recordes nos números de infecção.

"Os sistemas de vigilância da dengue foram muito prejudicados, já que nesses dois últimos anos havia um foco quase absoluto na pandemia de covid-19", acrescenta o médico, que também é professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Ainda em relação à pandemia, o menor número de infecções em 2021 também tem a ver com os períodos de maior isolamento social, que diminuíram a locomoção das pessoas pelas cidades.

"E vale lembrar que tivemos uma grande epidemia de dengue no país em 2019, então já era esperado um novo aumento a partir de 2022, já que as ondas da doença são cíclicas", diz a médica Melissa Falcão, da Sociedade Brasileira de Infectologia.

Por fim, Codeço destaca que "temos uma população empobrecida, com dificuldades de moradia, e vemos a precarização das cidades".

"Tudo isso dificulta o controle de vetores que transmitem a doença", explica a especialista, que coordena o InfoDengue, uma iniciativa da FioCruz e da Fundação Getúlio Vargas (FGV) para o monitoramento das doenças relacionadas ao Aedes.

"Também é importante observar o espalhamento da doença para o Sul do país, onde ela era pouco ativa ou quase inexistente. Essa expansão pode estar relacionada às mudanças climáticas e à própria adaptação do mosquito", complementa a epidemiologista.

A tendência, de acordo com o que aconteceu nas temporadas anteriores, é que os casos de dengue continuem a subir no país pelo menos até o meio de maio. A partir daí, com a chegada de temperaturas mais baixas nas regiões Sul, Sudeste e parte do Centro-Oeste, os registros devem voltar a cair.

"Os números da dengue costumam ser mais elevados durante verão, por causa da alta temperatura e da quantidade de chuvas, mas o período de ascensão da doença começa em outubro e vai até maio. A tendência é uma redução mais acentuada no número de casos a partir de junho", estipula Falcão.

"Mesmo assim, os cuidados de prevenção contra dengue devem acontecer durante todo o ano", ressalta a infectologista.

Detectadas as causas do problema, o que pode ser feito para lidar com essa epidemia oculta de dengue?

A resposta das autoridades

Como não existe uma vacina aprovada contra a dengue, as ações preventivas mais efetivas envolvem eliminar os criadouros do mosquito transmissor — e o ideal é que esse trabalho se inicie em janeiro ou fevereiro, quando os ovos começam a eclodir.

"Com a pandemia, sobraram menos recursos para combater o Aedes", diz Granato.

Agora em abril, existem menos ações que podem ser feitas. "Resta apostar no fumacê, que ajuda a inibir o mosquito adulto", completa o infectologista.

Outra atitude importante é ampliar e reforçar os serviços públicos de saúde, para conseguir acolher os pacientes com complicações da dengue.

O boletim epidemiológico do Ministério da Saúde contabiliza neste ano 378 episódios de dengue grave e outros 4,7 mil com sinais de alarme.

Granato também se mostra preocupado com a recorrência da dengue em regiões que já tiveram surtos e epidemias num passado recente.

"Existem quatro sorotipos do vírus, o que significa que uma mesma pessoa pode pegar dengue quatro vezes. O problema é que ter um segundo ou um terceiro quadro da doença aumenta o risco de sofrer com as formas mais graves", explica.

"E temos algumas regiões, especialmente no noroeste de São Paulo, que passam por surtos de dengue desde os anos 1980. Isso representa maior risco de morte nesses locais", continua.

'No momento, fumacê com inseticidas é uma das únicas opções para controle do mosquito transmissor da dengue'

A BBC News Brasil entrou em contato com as Secretarias Estaduais de Saúde de Goiás, Distrito Federal, Tocantins e São Paulo, locais com as cidades mais atingidas até o momento.

A secretaria do Distrito Federal afirmou que promove sempre ações de combate ao Aedes em todas as regiões administrativas.

"Semanalmente é realizada uma análise da incidência de casos por região e também das cidades em que há maior presença do mosquito. Após essa análise, as regiões que apresentam maior aumento passam a receber uma intensificação das ações, inclusive com o uso do UBV Pesado [fumacê], que é apenas uma das estratégias utilizadas no combate ao mosquito."

Já os representantes de Goiás admitem que "o avanço dos casos colocam o Estado em situação de alerta para a possibilidade de uma epidemia por dengue".

"A Secretaria Estadual de Saúde vincula o aumento expressivo da infestação do Aedes aegypti e da quantidade de casos das doenças causadas pelo vetor à intensidade das chuvas e à baixa adesão da população em limpar os seus domicílios."

A secretaria de São Paulo destacou que o número de casos no Estado está mais baixo (ou ligeiramente parecido) em 2022 na comparação com 2021, apesar da situação ruim de algumas cidades neste ano.

"Conforme as diretrizes do Sistema Único de Saúde, o trabalho de campo para combate ao mosquito transmissor da dengue compete primordialmente aos municípios."

A Secretaria Estadual de Saúde do Tocantins e o Ministério da Saúde foram procurados, mas não enviaram respostas até o fechamento desta reportagem.

Falcão entende que as políticas públicas precisam se reinventar e apostar em novas tecnologias no combate ao mosquito. "Já vimos que o que tem sido feito ao longo dos últimos anos não surtiu efeito."

"Outro ponto-chave é o investimento em infraestrutura, no saneamento básico, levando a uma parcela cada vez maior da população acesso ao abastecimento de água, sistema de esgotos, coleta de lixo e drenagem de águas pluviais", lista a médica.

O que você pode fazer

Além das políticas públicas, os especialistas chamam a atenção para as responsabilidades individuais no combate à dengue.

Aqui entram aquelas recomendações clássicas de evitar qualquer reservatório de água parada sem proteção em casa. O mosquito pode usar como criadouros grandes espaços, como caixas d'água e piscinas abertas, até pequenos objetos, como tampas de garrafa e vasos de planta.

Vale fazer uma faxina no quintal e na varanda, com especial atenção para depósitos, calhas e objetos que ficam ao relento e podem acumular água da chuva.

Instalar telas em portas e janelas ou usar repelentes na pele são atitudes que também podem ajudar.

'Número de casos de dengue em 2022 está bem acima do que foi registrado em 2021'

Por fim, é importante ficar atento aos sintomas da dengue, como febre, cansaço, vermelhidão em partes do corpo, coceira e dores na cabeça, nos músculos, nas articulações ou atrás dos olhos.

Após o diagnóstico da doença, a recomendação é fazer repouso, caprichar na hidratação e, se necessário, usar remédios que aliviam alguns desses incômodos.

"Todos precisam conhecer os sinais de que a doença pode estar evoluindo para as formas mais graves. Os principais são vômitos difíceis de controlar, febre que não diminui, dor na barriga e sangramentos", lista Granato.

"Nessa situação, é essencial procurar um pronto-socorro o mais rápido possível", conclui o médico. 

BBC Brasil

A imunidade parlamentar gera corrupção e abuso?




Sonho paraguaio de imunidade vitalícia é o canto das sereias de aspirantes a autocrata

Por Marcus André Melo* (foto)

É intuitiva a noção de que as imunidades são precondição para o exercício da atividade política nas democracias. Como podemos concebê-la se há espaço para retaliação política pelos governantes? Ou ainda sem plena liberdade de expressão? Mas é inegável que ela cria incentivos para o arbítrio e a corrupção.

Chafetz mostrou que duas tradições informaram os dispositivos legais para as imunidades nos EUA e no Reino Unido. A primeira delas, a versão forte do princípio que a soberania parlamentar deve prevalecer em relação a qualquer agente externo, inclusive tribunais, predominou até o século 19; na segunda, a soberania é exercida contra o monarca mas também sobre parlamentares. O Judiciário é visto aqui como potencial agente do povo.

É esta tradição que prevaleceu no Reino Unido, onde não há imunidade de qualquer natureza, cabendo ao Judiciário julgar malfeitos dos parlamentares sem qualquer impedimento.

No polo oposto, está o caso do Paraguai, onde há imunidade vitalícia para os presidentes. No meio do caminho, está a França, que, desde a Revolução Francesa, proibiu a prisão de parlamentares, salvo para crimes comuns (A nossa "Revolução Francesa" é o voto do STF, na ação penal 937/ 2018).

Reddy et al (2020) investigou a questão da "imunidade formal" (garantias processuais como foro especial; proibição ou licença legislativa para prisão etc.) e construiu um índice a partir de 18 critérios (quórum para a licença, duração da imunidade etc.) para membros dos três Poderes, de 90 países.

O Paraguai tem o escore mais elevado (0,89, em uma escala de 0 a 1), seguido de Uruguai (0,83), Brasil e Argentina (empatados em 0,78); Reino Unido, Canadá e Austrália têm escore zero (mediana = 0,38; EUA= 0,28). América Latina e Europa do Leste exibem os maiores escores.

São dois os achados principais da pesquisa. O primeiro, contra intuitivo: a correlação entre imunidade e renda per capita ou nível de democracia é próxima de zero. O segundo: há robusta associação positiva entre imunidade formal e corrupção.

Os autores levam em conta fatores como tradição legal, regras eleitorais, sistema de governo etc. E calcularam índices históricos de imunidade e de corrupção desde o século 19 para eliminar problemas de endogeneidade na estimação do modelo (políticos corruptos têm incentivos eles próprios para aprovar dispositivos de imunidade cada vez mais fortes).

A imunidade formal é crucial nos processos de transição e consolidação das democracias, mas degeneram ao longo processo em arranjos que estimulam a corrupção e outras formas de abuso de prerrogativas.

Assim, o sonho paraguaio de imunidade vitalícia é o canto das sereias de autocratas.

*Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).

Folha de São Paulo

Quem é Peter Thiel, o bilionário que ajudou a fundar o Facebook e está investindo nos conservadores.




Se, por um lado, é ingênuo confiar que um único “do contra” no Vale do Silício seja capaz de mudar o jogo, por outro, a presença de um jogador poderoso com tais perspectivas pode tornar as disputas mais interessantes. 

Por Maria Clara Vieira 

Em dezembro de 2010, o filme “A Rede Social” levou aos cinemas a história do Facebook. Com Jesse Eisenberg (Liga da Justiça) no papel de Mark Zuckerberg, e Andrew Garfield (O Espetacular Homem-Aranha) e Justin Timberlake (O Preço do Amanhã) como os co-fundadores Eduardo Saverin e Sean Parker, a obra mergulha nos bastidores do processo que transformou um ressentido Zuckerberg – que criara uma plataforma para falar mal da ex-namorada - no bilionário mais jovem do mundo até então.

A certa altura, o filme mostra Mark e seu colega, Parker, aguardando um encontro com um possível investidor em uma antessala escura. Frente a frente com o anfitrião, a dupla é informada de que receberá um generoso aporte de meio milhão de dólares, capital decisivo para o crescimento da empresa e garante ao investidor um assento no conselho do Facebook pelos próximos 17 anos. Este homem é Peter Thiel, o bilionário que hoje é caracterizado por parte da imprensa como o “vilão do Vale do Silício” e que se tornou um dos padrinhos da direita americana.

Nascido em Frankfurt, na Alemanha, de onde seus pais emigraram ainda durante sua infância, Thiel cresceu nos Estados Unidos e, antes de se aventurar no mundo da tecnologia, estudou filosofia e direito na Universidade de Stanford. Depois de alguns meses trabalhando em um escritório de advocacia de Nova York, entrou no banco de investimentos Credit Suisse, que lhe abriu as portas do ofício de investidor de risco.

Com a fortuna, veio a prática de investir em jovens empreendedores com menos de 20 anos e dispostos a abandonar a universidade. Lançou a Thiel Capital Management e, em 1998, foi co-fundador da empresa de pagamentos que se tornaria o PayPal. Nos anos 2000, lançou a empresa de capital de risco Founders Fund, que apoiou a SpaceX de Elon Musk e o Facebook de Zuckerberg. Até fevereiro deste ano, Thiel fazia parte do Conselho Diretor do Grupo Meta e era descrito por biógrafos e analistas de tecnologia como uma das vozes mais poderosas do Vale do Silício.

"Peter tem sido um membro valioso de nosso Conselho e sou profundamente grato por tudo que ele fez por nossa empresa - desde acreditar em nós quando poucos acreditariam, até me ensinar tantas lições sobre negócios, economia e o mundo" afirmou Mark Zuckerberg, em comunicado. Thiel, por sua vez, expressou confiança no futuro da Meta e elogiou o ex-colega. Seu foco, de agora em diante, será investir em candidatos republicanos que concorrem à eleição de meio mandato e determinam o controle do Congresso americano.

Libertário, conservador ou “do contra”?

Não é por acaso que a mais recente biografia de Peter Thiel, escrita pelo jornalista Max Chafkin, é intitulada “The Contrarian” ou “O Do Contra”, em tradução livre: o empresário é uma das figuras mais destoantes do Vale do Silício, ora descrito como um visionário, ora como um magnata excêntrico. Em favor de seu conhecido tino para tendências e ousadia para nadar contra a corrente na universidade e, posteriormente, nas Big Tech, há que se apontar o lançamento de seu primeiro livro, “The Diversity Myth: Multiculturalism and Political Intolerance on Campus” (“O Mito da Diversidade: Multiculturalismo e Intolerância Política no Campus”), escrito em parceria com seu ex-colega de Stanford e futuro investidor de risco, David Sacks.

Em síntese, duas décadas antes da “cultura do cancelamento” dominar o debate público, a dupla alertou para a emergência de um pós-modernismo cínico e avesso à liberdade nas universidades. Thiel e Sacks descreveram o surgimento de currículos que fomentavam não a crítica, mas o divisionismo; não o estudo e compreensão de dimensões humanas como sexualidade e raça, mas uma verdadeira obsessão por estes assuntos, que se tornariam as lentes através das quais qualquer indivíduo deveria ser visto e interpretado. A versão repaginada da luta de classes que descambaria em uma nova caça às bruxas. O livro foi publicado sob o selo do Independent Studies in Political Economy, grupo de estudos da Universidade de Stanford que Thiel ajudou a fundar e reuniu intelectuais liberais e conservadores de todo o país.

Pouco tempo depois, a emergência de Thiel como um empresário influente colocou seus escritos em evidência. Em 2009, escrevendo sobre seu posicionamento político, o investidor se declararia libertário e causaria polêmica ao afirmar que não acreditava que a liberdade e a democracia fossem compatíveis. No mesmo texto, argumentou que o voto feminino e o aumento de beneficiários da previdência social haviam dificultado a eleição de políticos libertários. Criticado, precisou explicar que não apoiava a retirada do direito de voto das mulheres.

O ano de 2016 traria novos holofotes, uma vez que Thiel foi um dos principais financiadores da campanha do ex-presidente republicano Donald Trump com a vultosa doação de US$ 1,25 milhão. Dezenas de reportagens surgiriam na imprensa internacional, levando o empresário se desculpar, por exemplo, por ter escrito em “The Diversity Myth” que o politicamente correto faria com que mulheres arrependidas de relações do passado acusassem os ex-parceiros de estupro.

Não obstante, Thiel sempre se manteve crítico à esquerda progressista, o que o levou a ser alvo de uma série de artigos de um jornal de fofoca que revelaria ao mundo sua homossexualidade. Em resposta, o empresário assumiria sua orientação sexual durante a convenção do Partido Republicano e patrocinaria um caríssimo processo contra a Gawker Media, movido pelo ex-lutador Terry Bolea, que teve um vídeo íntimo vazado pela publicação. O processo resultaria no fechamento do jornal.

Atualmente, os investimentos do bilionário na política americana estão concentrados no escritor J. D. Vance, autor do best-seller “Hillybilly – Era uma vez um sonho” (Editora Leya), que conta a história da degradação da classe média americana. Leal apoiador de Trump, Vance é candidato ao Senado americano pelo estado de Ohio e, junto com Thiel, é um dos principais investidores da plataforma Rumble, que pretende ser uma alternativa ao Facebook e ao Twitter com a promessa de liberdade de expressão.

Outros quinze candidatos ao Senado e ao Congresso foram contemplados pelos US$ 20,4 milhões investidos por Thiel no Partido Republicano, entre eles Ted Cruz, senador pelo Texas. Ele também ajudou a financiar a National Conservative Conference ("Conferência Nacional Conservadora"), evento que reuniu expoentes da contracultura americana. Uma recente reportagem da Vanity Fair aponta as diferentes facetas do "movimento" que, ao contrário do que frequentemente se retrata, abriga desde esquerdistas críticos à ascensão da cultura "woke" a liberais clássicos e conservadores nacionalistas. O próprio Thiel já foi criticado pela imprensa por descrever-se como libertário, mas ter dito, por exemplo, que grandes empresas de tecnologia não deveriam fazer negócios com a China. Além disso, é apontado como um dos responsáveis por incentivar Elon Musk a comprar o Twitter.

Peter Thiel, no fim das contas, assume sem pudor o epíteto conferido pelo biógrafo Chakfin. Aos 54 anos e com uma fortuna estimada em 6 bilhões de dólares, o bilionário não esconde seu gosto pela oposição ao mainstream. Outro fato curioso que aponta nesse sentido é o de que, em seu livro “De Zero a Um”, lançado em 2014, o investidor conta que sempre que entrevista alguém para um trabalho pergunta: “Em qual importante verdade muito pouca gente concorda com você?”. O objetivo, afirma, é identificar gente capaz de "romper o consenso, sem medo de ser impopular".

René Girard e a competição no Vale do Silício

Parte desta rara convicção talvez se deva a um dos elementos mais marcantes na formação de Peter Thiel: durante seus estudos em Stanford, ele foi aluno do filósofo e antropólogo francês, René Girard, a quem atribui grande influência. Crítico do pós-modernismo em ascensão na academia ainda nos anos 1980, Girard tornou-se conhecido por seus estudos do desejo, sobretudo pela elaboração da mimética. Em síntese, o pesquisador se opunha à ideia de que o desejo humano é espontâneo: trata-se, na verdade, do resultado de um processo de imitação e competição que inevitavelmente leva à violência.

Girard defendia que, de tempos em tempos, o escalonamento destas "crises miméticas", através do acirramento da competição por objetos de desejo em determinada comunidade, levaria seus membros a eleger um bode expiatório para "pagar" pelos pecados do grupo. Este processo levaria ao surgimento da cultura e da religião, elementos indispensáveis para a coesão de uma comunidade e contenção da violência. Sua conclusão óbvia era a de que uma sociedade completamente secularizada estaria fadada ao conflito. Após um processo de conversão pessoal, Girard se tornou um grande defensor do cristianismo. Um de seus principais divulgadores no Brasil foi o filósofo Olavo de Carvalho.

Com o pensamento girardiano em vista, a fixação de Thiel pela contracorrente ganha novos contornos. "O conselho que tenho é não ser excessivamente competitivo. O sistema força você a competir. Você compete, você vence, você corre e repete. Você precisa encontrar algo no qual não esteja constantemente olhando apenas para as pessoas ao seu redor. Tenha algum outro ponto de referência. Você precisa encontrar alguma transcendência", aconselha Thiel. "Não procure a competição. Ao fazê-lo, você perde de vista o que é realmente importante e significativo. Saia do caminho comum", escreveu em outra ocasião.

Se o filósofo francês estiver certo, no fim das contas, é de se esperar que a obsessão de uma geração pelo pensamento único leve não apenas à competição desmedida, mas ao colapso da confiança, do diálogo e, no limite, do bem comum. Se, por um lado, é ingênuo confiar que um único “do contra” no Vale do Silício seja capaz de mudar o jogo, por outro, a presença de um jogador poderoso com tais perspectivas pode tornar as disputas mais interessantes.

Gazeta do Povo (PR)

Novo choque - Editorial




Governos devem se preparar para impactos de longa duração da guerra na Ucrânia

Relatório do Banco Mundial, divulgado na semana passada, assume projeções sombrias para os impactos da guerra na Ucrânia. O conflito agrava os efeitos econômicos negativos provocados pela Covid, reforçando alterações nos padrões globais de comércio, produção e consumo de produtos básicos.

Os preços permanecerão em alta ao menos até o final de 2024, estima o documento, intitulado Projeções para o Mercado de Commodities.

No setor de energia, por exemplo, as matérias-primas tiveram nos últimos dois anos o maior aumento desde a crise do petróleo de 1973. A previsão é que subam mais de 50% neste ano, na média. Quanto aos grãos, o encarecimento é o maior desde 2008.

Para o Banco Mundial, a acomodação a partir de 2023 e 2024 será lenta, com os preços estacionando bem acima da média dos cinco anos mais recentes. Trata-se de um efeito colateral do maior uso de fontes fósseis, que promoveu choques em diferentes setores.

A guerra na Ucrânia também alterou a dinâmica e os custos do transporte de mercadorias pelo mundo, obrigando a adoção de novas rotas que levam a maior consumo de combustível. Ou seja, criou-se um ciclo que se autoalimenta.

Merecem atenção as recomendações do organismo, para o qual os governos devem agir contra a inflação e a falta de produtos para as famílias mais pobres.

Cumpre utilizar a política pública para ampliar redes de assistência, com transferências de dinheiro aos mais pobres, programas de alimentação escolar e frentes de trabalho —alternativas que podem assegurar uma renda mínima.

Foi o que se fez por aqui com a criação do Auxílio Brasil, embora as motivações e os procedimentos não tenham sido os mais virtuosos. Resta muito a fazer para aperfeiçoar o programa de transferência de renda e garantir seu financiamento nos limites orçamentários.

O Banco Mundial defende ainda cautela no uso de subsídios e controles de preços, especialmente em relação aos combustíveis e os alimentos, que podem gerar o efeito inverso ao desejado.

Em vez de segurar a inflação, tais artifícios tendem a distorcer a oferta dos produtos, ao mesmo tempo em que elevam déficits públicos —o que resulta em novas pressões sobre os preços.

Trata-se de cenário cuja duração é imprevisível, e a tarefa de minorar o sofrimento social demandará, além de compaixão, racionalidade.

Folha de São Paulo

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