Se, por um lado, é ingênuo confiar que um único “do contra” no Vale do Silício seja capaz de mudar o jogo, por outro, a presença de um jogador poderoso com tais perspectivas pode tornar as disputas mais interessantes.
Por Maria Clara Vieira
Em dezembro de 2010, o filme “A Rede Social” levou aos cinemas a história do Facebook. Com Jesse Eisenberg (Liga da Justiça) no papel de Mark Zuckerberg, e Andrew Garfield (O Espetacular Homem-Aranha) e Justin Timberlake (O Preço do Amanhã) como os co-fundadores Eduardo Saverin e Sean Parker, a obra mergulha nos bastidores do processo que transformou um ressentido Zuckerberg – que criara uma plataforma para falar mal da ex-namorada - no bilionário mais jovem do mundo até então.
A certa altura, o filme mostra Mark e seu colega, Parker, aguardando um encontro com um possível investidor em uma antessala escura. Frente a frente com o anfitrião, a dupla é informada de que receberá um generoso aporte de meio milhão de dólares, capital decisivo para o crescimento da empresa e garante ao investidor um assento no conselho do Facebook pelos próximos 17 anos. Este homem é Peter Thiel, o bilionário que hoje é caracterizado por parte da imprensa como o “vilão do Vale do Silício” e que se tornou um dos padrinhos da direita americana.
Nascido em Frankfurt, na Alemanha, de onde seus pais emigraram ainda durante sua infância, Thiel cresceu nos Estados Unidos e, antes de se aventurar no mundo da tecnologia, estudou filosofia e direito na Universidade de Stanford. Depois de alguns meses trabalhando em um escritório de advocacia de Nova York, entrou no banco de investimentos Credit Suisse, que lhe abriu as portas do ofício de investidor de risco.
Com a fortuna, veio a prática de investir em jovens empreendedores com menos de 20 anos e dispostos a abandonar a universidade. Lançou a Thiel Capital Management e, em 1998, foi co-fundador da empresa de pagamentos que se tornaria o PayPal. Nos anos 2000, lançou a empresa de capital de risco Founders Fund, que apoiou a SpaceX de Elon Musk e o Facebook de Zuckerberg. Até fevereiro deste ano, Thiel fazia parte do Conselho Diretor do Grupo Meta e era descrito por biógrafos e analistas de tecnologia como uma das vozes mais poderosas do Vale do Silício.
"Peter tem sido um membro valioso de nosso Conselho e sou profundamente grato por tudo que ele fez por nossa empresa - desde acreditar em nós quando poucos acreditariam, até me ensinar tantas lições sobre negócios, economia e o mundo" afirmou Mark Zuckerberg, em comunicado. Thiel, por sua vez, expressou confiança no futuro da Meta e elogiou o ex-colega. Seu foco, de agora em diante, será investir em candidatos republicanos que concorrem à eleição de meio mandato e determinam o controle do Congresso americano.
Libertário, conservador ou “do contra”?
Não é por acaso que a mais recente biografia de Peter Thiel, escrita pelo jornalista Max Chafkin, é intitulada “The Contrarian” ou “O Do Contra”, em tradução livre: o empresário é uma das figuras mais destoantes do Vale do Silício, ora descrito como um visionário, ora como um magnata excêntrico. Em favor de seu conhecido tino para tendências e ousadia para nadar contra a corrente na universidade e, posteriormente, nas Big Tech, há que se apontar o lançamento de seu primeiro livro, “The Diversity Myth: Multiculturalism and Political Intolerance on Campus” (“O Mito da Diversidade: Multiculturalismo e Intolerância Política no Campus”), escrito em parceria com seu ex-colega de Stanford e futuro investidor de risco, David Sacks.
Em síntese, duas décadas antes da “cultura do cancelamento” dominar o debate público, a dupla alertou para a emergência de um pós-modernismo cínico e avesso à liberdade nas universidades. Thiel e Sacks descreveram o surgimento de currículos que fomentavam não a crítica, mas o divisionismo; não o estudo e compreensão de dimensões humanas como sexualidade e raça, mas uma verdadeira obsessão por estes assuntos, que se tornariam as lentes através das quais qualquer indivíduo deveria ser visto e interpretado. A versão repaginada da luta de classes que descambaria em uma nova caça às bruxas. O livro foi publicado sob o selo do Independent Studies in Political Economy, grupo de estudos da Universidade de Stanford que Thiel ajudou a fundar e reuniu intelectuais liberais e conservadores de todo o país.
Pouco tempo depois, a emergência de Thiel como um empresário influente colocou seus escritos em evidência. Em 2009, escrevendo sobre seu posicionamento político, o investidor se declararia libertário e causaria polêmica ao afirmar que não acreditava que a liberdade e a democracia fossem compatíveis. No mesmo texto, argumentou que o voto feminino e o aumento de beneficiários da previdência social haviam dificultado a eleição de políticos libertários. Criticado, precisou explicar que não apoiava a retirada do direito de voto das mulheres.
O ano de 2016 traria novos holofotes, uma vez que Thiel foi um dos principais financiadores da campanha do ex-presidente republicano Donald Trump com a vultosa doação de US$ 1,25 milhão. Dezenas de reportagens surgiriam na imprensa internacional, levando o empresário se desculpar, por exemplo, por ter escrito em “The Diversity Myth” que o politicamente correto faria com que mulheres arrependidas de relações do passado acusassem os ex-parceiros de estupro.
Não obstante, Thiel sempre se manteve crítico à esquerda progressista, o que o levou a ser alvo de uma série de artigos de um jornal de fofoca que revelaria ao mundo sua homossexualidade. Em resposta, o empresário assumiria sua orientação sexual durante a convenção do Partido Republicano e patrocinaria um caríssimo processo contra a Gawker Media, movido pelo ex-lutador Terry Bolea, que teve um vídeo íntimo vazado pela publicação. O processo resultaria no fechamento do jornal.
Atualmente, os investimentos do bilionário na política americana estão concentrados no escritor J. D. Vance, autor do best-seller “Hillybilly – Era uma vez um sonho” (Editora Leya), que conta a história da degradação da classe média americana. Leal apoiador de Trump, Vance é candidato ao Senado americano pelo estado de Ohio e, junto com Thiel, é um dos principais investidores da plataforma Rumble, que pretende ser uma alternativa ao Facebook e ao Twitter com a promessa de liberdade de expressão.
Outros quinze candidatos ao Senado e ao Congresso foram contemplados pelos US$ 20,4 milhões investidos por Thiel no Partido Republicano, entre eles Ted Cruz, senador pelo Texas. Ele também ajudou a financiar a National Conservative Conference ("Conferência Nacional Conservadora"), evento que reuniu expoentes da contracultura americana. Uma recente reportagem da Vanity Fair aponta as diferentes facetas do "movimento" que, ao contrário do que frequentemente se retrata, abriga desde esquerdistas críticos à ascensão da cultura "woke" a liberais clássicos e conservadores nacionalistas. O próprio Thiel já foi criticado pela imprensa por descrever-se como libertário, mas ter dito, por exemplo, que grandes empresas de tecnologia não deveriam fazer negócios com a China. Além disso, é apontado como um dos responsáveis por incentivar Elon Musk a comprar o Twitter.
Peter Thiel, no fim das contas, assume sem pudor o epíteto conferido pelo biógrafo Chakfin. Aos 54 anos e com uma fortuna estimada em 6 bilhões de dólares, o bilionário não esconde seu gosto pela oposição ao mainstream. Outro fato curioso que aponta nesse sentido é o de que, em seu livro “De Zero a Um”, lançado em 2014, o investidor conta que sempre que entrevista alguém para um trabalho pergunta: “Em qual importante verdade muito pouca gente concorda com você?”. O objetivo, afirma, é identificar gente capaz de "romper o consenso, sem medo de ser impopular".
René Girard e a competição no Vale do Silício
Parte desta rara convicção talvez se deva a um dos elementos mais marcantes na formação de Peter Thiel: durante seus estudos em Stanford, ele foi aluno do filósofo e antropólogo francês, René Girard, a quem atribui grande influência. Crítico do pós-modernismo em ascensão na academia ainda nos anos 1980, Girard tornou-se conhecido por seus estudos do desejo, sobretudo pela elaboração da mimética. Em síntese, o pesquisador se opunha à ideia de que o desejo humano é espontâneo: trata-se, na verdade, do resultado de um processo de imitação e competição que inevitavelmente leva à violência.
Girard defendia que, de tempos em tempos, o escalonamento destas "crises miméticas", através do acirramento da competição por objetos de desejo em determinada comunidade, levaria seus membros a eleger um bode expiatório para "pagar" pelos pecados do grupo. Este processo levaria ao surgimento da cultura e da religião, elementos indispensáveis para a coesão de uma comunidade e contenção da violência. Sua conclusão óbvia era a de que uma sociedade completamente secularizada estaria fadada ao conflito. Após um processo de conversão pessoal, Girard se tornou um grande defensor do cristianismo. Um de seus principais divulgadores no Brasil foi o filósofo Olavo de Carvalho.
Com o pensamento girardiano em vista, a fixação de Thiel pela contracorrente ganha novos contornos. "O conselho que tenho é não ser excessivamente competitivo. O sistema força você a competir. Você compete, você vence, você corre e repete. Você precisa encontrar algo no qual não esteja constantemente olhando apenas para as pessoas ao seu redor. Tenha algum outro ponto de referência. Você precisa encontrar alguma transcendência", aconselha Thiel. "Não procure a competição. Ao fazê-lo, você perde de vista o que é realmente importante e significativo. Saia do caminho comum", escreveu em outra ocasião.
Se o filósofo francês estiver certo, no fim das contas, é de se esperar que a obsessão de uma geração pelo pensamento único leve não apenas à competição desmedida, mas ao colapso da confiança, do diálogo e, no limite, do bem comum. Se, por um lado, é ingênuo confiar que um único “do contra” no Vale do Silício seja capaz de mudar o jogo, por outro, a presença de um jogador poderoso com tais perspectivas pode tornar as disputas mais interessantes.
Gazeta do Povo (PR)