Sonho paraguaio de imunidade vitalícia é o canto das sereias de aspirantes a autocrata
Por Marcus André Melo* (foto)
É intuitiva a noção de que as imunidades são precondição para o exercício da atividade política nas democracias. Como podemos concebê-la se há espaço para retaliação política pelos governantes? Ou ainda sem plena liberdade de expressão? Mas é inegável que ela cria incentivos para o arbítrio e a corrupção.
Chafetz mostrou que duas tradições informaram os dispositivos legais para as imunidades nos EUA e no Reino Unido. A primeira delas, a versão forte do princípio que a soberania parlamentar deve prevalecer em relação a qualquer agente externo, inclusive tribunais, predominou até o século 19; na segunda, a soberania é exercida contra o monarca mas também sobre parlamentares. O Judiciário é visto aqui como potencial agente do povo.
É esta tradição que prevaleceu no Reino Unido, onde não há imunidade de qualquer natureza, cabendo ao Judiciário julgar malfeitos dos parlamentares sem qualquer impedimento.
No polo oposto, está o caso do Paraguai, onde há imunidade vitalícia para os presidentes. No meio do caminho, está a França, que, desde a Revolução Francesa, proibiu a prisão de parlamentares, salvo para crimes comuns (A nossa "Revolução Francesa" é o voto do STF, na ação penal 937/ 2018).
Reddy et al (2020) investigou a questão da "imunidade formal" (garantias processuais como foro especial; proibição ou licença legislativa para prisão etc.) e construiu um índice a partir de 18 critérios (quórum para a licença, duração da imunidade etc.) para membros dos três Poderes, de 90 países.
O Paraguai tem o escore mais elevado (0,89, em uma escala de 0 a 1), seguido de Uruguai (0,83), Brasil e Argentina (empatados em 0,78); Reino Unido, Canadá e Austrália têm escore zero (mediana = 0,38; EUA= 0,28). América Latina e Europa do Leste exibem os maiores escores.
São dois os achados principais da pesquisa. O primeiro, contra intuitivo: a correlação entre imunidade e renda per capita ou nível de democracia é próxima de zero. O segundo: há robusta associação positiva entre imunidade formal e corrupção.
Os autores levam em conta fatores como tradição legal, regras eleitorais, sistema de governo etc. E calcularam índices históricos de imunidade e de corrupção desde o século 19 para eliminar problemas de endogeneidade na estimação do modelo (políticos corruptos têm incentivos eles próprios para aprovar dispositivos de imunidade cada vez mais fortes).
A imunidade formal é crucial nos processos de transição e consolidação das democracias, mas degeneram ao longo processo em arranjos que estimulam a corrupção e outras formas de abuso de prerrogativas.
Assim, o sonho paraguaio de imunidade vitalícia é o canto das sereias de autocratas.
*Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).
Folha de São Paulo