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terça-feira, junho 07, 2022

Um país fora dos trilhos - Parte 2




Uma única linha diária de passageiros mantém viva a magia de viajar de trem no Brasil. 

Por Dagomir Marquezi 

Embarcar na Estrada de Ferro Vitória a Minas (EFVM) é como sentar ao lado de Harry Potter no Hogwarts Express. Não é um trem-bala, não exibe nenhum tipo de luxo ou tecnologia de ponta. Mas permite aos seus privilegiados passageiros viajar de volta à magia que nos foi roubada. E ter um fiapo de esperança de que esse absurdo pode ser um dia revertido.

Se você quiser viver essa aventura, é bom saber que ela está temporariamente mais curta. Normalmente, a EFVM liga as capitais do Espírito Santo e de Minas Gerais. Mas as intensas chuvas do início do ano provocaram desde abril a interrupção entre as cidades de Timóteo e Belo Horizonte. Uma erosão foi identificada no quilômetro 493, na cidade de Antônio Dias. Agora, o grande trem verde-amarelo cobre a distância entre Cariacica (subúrbio de Vitória) e Timóteo (MG). Um trem vai, outro volta. E no dia seguinte tem mais.

Começa a jornada

Eu viajei até Vitória (de avião) para pegar o último trem. Passagens podem (e devem) ser compradas on-line. Existem duas categorias: para quem quer a classe econômica, o preço do trecho atual está em R$ 52. Na classe executiva, com poltronas mais confortáveis, a passagem sobe para R$ 82.

Para embarcar, apareci na Estação Pedro Nolasco, em Cariacica, às 6 e meia da manhã de um sábado. A viagem do dia anterior havia sido cancelada por luto. Uma equipe de 18 funcionários da ferrovia estava a caminho da estação de Timóteo e o ônibus que os transportava bateu numa carreta, causando a morte de três deles. A tripulação escalada para o sábado nos recebeu com fitinhas negras de luto no peito.

Portões abertos, cada passageiro é encaminhado para um dos carros. (Passageiros usam carros. Vagões são para carga.) O comboio do dia recebeu cerca de 400 passageiros, distribuídos em três carros executivos e cinco econômicos. Existe ainda um carro com adaptação para cadeirantes, que também abriga a tripulação em três pequenas cabines.

O carro-restaurante também está nos trilhos, iluminado, alegre, com suas cadeiras verdes e mesas brancas. Mas ele não é usado desde o início da pandemia com a função original. O que é uma pena, pois refeições num carro-restaurante costumam ser experiências inesquecíveis. Na viagem da EFVM ninguém precisa usar máscara, e vários passageiros se espalham pelas mesas em conversas animadas. De qualquer jeito, a cozinha-lanchonete está funcionando normalmente, distribuindo as refeições nos assentos.

Os dez carros estão ocupados. E, como se a gente estivesse na Suíça, o trem começa sua jornada exatamente na hora prevista — nem um segundo a mais, nem um segundo a menos. Ele é puxado por uma veterana locomotiva GE Dash9 40BBW — um monstro de 4 mil cavalos de força e 192 toneladas made in USA, pintada de rosa, com o número de identificação 1288 sobre os para-brisas. Os carros foram comprados na Romênia há sete anos e mostram suavidade, estabilidade e silêncio quando começam a se mover.

São 7 horas de uma manhã de sol e, pelo menos para mim, o Brasil acabou de voltar aos trilhos.

Em companhia de um rio

A Estrada de Ferro Vitória a Minas (ou EF-262) começou a nascer em 1904, com uma ligação entre a capital do Espírito Santo e Natividade, com apenas 30 quilômetros de extensão. Transportava café e passageiros. Quatro anos depois, o foco mudou para o transporte de minério de ferro a partir de Itabira. Só em 1994, segundo a Wikipedia, a EFVM atingiu Belo Horizonte.

Quando a ferrovia voltar a ser usada em toda a extensão, vai somar 664 quilômetros, com 30 pontos de embarque e desembarque, servindo a 42 municípios. A Vale mantém uma segunda linha de passageiros na Estrada de Ferro de Carajás. As condições são semelhantes às da EFVM, mas a viagem não é diária. A Carajás liga São Luís do Maranhão a Parauapebas, no Estado do Pará. É um empreendimento mais “social” que turístico, o que inclui um carro para cursos e atividades comunitárias. Mas ela não tem o charme nem a paisagem que corre

Uma hora depois da partida da Estação Pedro Nolasco, o trem já passou por Flexal e Fundão, que são subúrbios de Vitória. As marcas da degradação urbana ficam para trás.

Uma rodovia costuma destruir o ambiente por onde passa. É a situação clássica: na estrada surge um posto, que gera uma pequena vila, que degrada tudo ao redor. A estrada de ferro dificulta esse processo. Uma linha ferroviária costuma preservar naturalmente seus arredores, e a Vitória a Minas é uma prova viva disso.

Às 9h02, o trem dá uma rápida parada na Estação Mascarenhas/Baixo Guandu. A partir daí, os passageiros vão contar com uma companhia grandiosa por quase todo o restante da viagem: o majestoso Rio Doce, que vai correr paralelo à linha, à direita do trem.

A essa altura, o carrinho do lanche já passou com salgadinhos, sanduíches, sucos e um café de coador que cai muito bem. Boa parte dos passageiros já dormiu com o balanço soporífero sobre os trilhos. A criançada olha para fora e vê o glorioso Vale do Rio Doce passando pela janela.

“Como você pode chorar aqui?”

Um trem é o oposto da neurose individualista de um avião. Os passageiros não precisam chutar o encosto do banco da frente para não ter os joelhos esmagados. Não ficam presos a uma cadeira, amarrados por um cinto. Você tem muito espaço e liberdade. Não existem avisos de “permaneçam sentados com os cintos afivelados pois passaremos por uma turbulência…”.

Aliás, não existem cintos de segurança num trem. O comando das operações da Vale em Tubarão (ES) controla tudo em seus monitores. Sabem com antecedência até se algum carro está parado sobre os trilhos em algum cruzamento.

Os passageiros podem se levantar a qualquer momento e caminhar centenas de metros atravessando carro por carro, observando outras pessoas, curtindo outro carro se tiver lugar disponível. De tempo em tempo, o pessoal da manutenção passa tirando qualquer sinal de sujeira dos corredores.

Essa segurança, esse relaxamento e essa liberdade acabam gerando um clima de confiança e aproximação entre os passageiros. Conversas entre desconhecidos acontecem espontaneamente. Gestos de solidariedade brotam do nada. Crianças podem ser administradas com tranquilidade, pois há espaço para que se movimentem, e monitores de televisão passam o tempo todo longas-metragens produzidos pela Pixar e pela Marvel (leve seus próprios fones de ouvido).

Uma cena resume o bem-estar generalizado a bordo. Um menininho chora porque vai ter de desembarcar na próxima estação. Um senhor, evidentemente usuário de muitos anos da ferrovia, diz à criança em tom amistoso, com um sorrisão sob o bigode branco: “Como você pode chorar aqui? Você está viajando de trem!”.

E então as coisas melhoram um pouco mais. Chega a hora do almoço. O funcionário passa de cadeira em cadeira perguntando o que o passageiro vai querer. Pergunto sem muita esperança se ele tem alguma opção vegetariana. “Omelete de queijo”, responde. Meia hora depois, chega a caixinha plástica com a omelete, um arroz e uma microssalada. Não é um flan d’epinards au poires do Orient Express, mas custa R$ 20 e está uma delícia. O Brasil inteiro conhece a fama da cozinha mineira, mesmo nos pratos mais simples.

Uma crise sem prazo para acabar

Às 13h03, o trem chega à maior estação do percurso: Presidente Valadares. Em praticamente todas as outras paradas, o processo de embarque e desembarque é muito rápido, geralmente um minuto. Funcionários saem antes para ajudar passageiros com dificuldades de descer.

Para evitar confusão, só se entra e sai por uma única porta do trem inteiro (geralmente no carro econômico 1). Em Valadares, a parada aumenta para oito minutos e é possível descer à plataforma para tirar fotos. Logo os comissários nos convidam a subir de novo. E a viagem continua, a aproximadamente 70 quilômetros por hora. Em termos de transporte, é o equivalente ao slow food.

Paramos em cidades que provavelmente você, como eu, nunca tinha ouvido falar: Pedra Corrida, Periquito, Frederico Selow, Ipaba. Nos alto-falantes, surge a voz do chefe do trem, Rogerio Brangion. Ele dá as boas-vindas e se coloca à disposição em caso de algum problema.

“Vendemos mais que passagens”

O chefe é uma espécie de capitão do trem, responsável pelo seu funcionamento nos mínimos detalhes. Como definir em quais estações o trem vai parar, dependendo da demanda ou não dos passageiros. Rogério tem uma saleta com um laptop e um serviço de comunicação com o qual acerta os detalhes com o maquinista.

Seu trabalho anda mais leve, por causa de uma crise. “A gente transportava 2,5 mil passageiros por dia por trem, e as passagens tinham que ser compradas com boa antecedência”, diz Rogério. “Na época, a locomotiva puxava cinco carros executivos e 13 de classe econômica.” Um trem saía cheio de Vitória, o outro igualmente cheio de Belo Horizonte. Os dois se cruzavam mais ou menos no meio do caminho.

Aí veio a pandemia de covid. Ela obrigou a empresa a deixar os vagões bem mais vazios, com todo mundo usando máscara. E trem não combina com distanciamento social, muito pelo contrário. Quando a pandemia começou a ser controlada, a Vale descobriu uma série de problemas estruturais no trecho entre Belo Horizonte e a cidade de Timóteo. Um período anormal de fortes chuvas ameaçou a linha com quedas de barreiras.

Os trens de carga continuam fazendo o trecho completo, mas a empresa preferiu evitar arriscar com os trens de passageiros. Os comboios, que saíam lotados de Belo Horizonte, passaram a partir quase vazios da cidade de Timóteo, com pouco mais de 90 mil habitantes.

Até quando vai essa interrupção? “Ninguém sabe”, diz o chefe. “Alguns falam em menos de um mês, outros falam que até o fim do ano não libera.” Existe o perigo de o serviço ser encerrado? “A Vale nem pensa nisso”, diz o chefe, com firmeza. E a consciência de que ele comanda mais do que um meio de transporte. Ele é o encarregado de manter funcionando uma instituição, um pedaço de nossa memória, a esperança da volta de um meio de transporte ao mesmo tempo racional, seguro e altamente afetivo.

“Outro dia, entrou uma senhora que me disse emocionada que havia 40 anos tinha o sonho de andar de trem uma vez na vida”, conta Rogério, com o sorriso tranquilo da missão cumprida. “Por isso eu digo que nesse trem a gente vende mais do que passagens. A gente vende sonhos.”

Ponto final

Às 15h28, o trem faz sua última parada: Estação Mário Carvalho, em Timóteo. A viagem durou oito horas e 28 minutos de puro prazer. O mesmo percurso de carro, segundo o Google Maps, demoraria apenas uma hora a menos. Mas enfrentaria a quarta rodovia mais perigosa do Brasil (segundo levantamento da Confederação Nacional do Transporte): a BR-381.

No dia seguinte, às 11h47 em ponto, o grande trem vai fazer o caminho contrário. Para quem vive nessa região (ou na grande maioria dos países do restante do mundo), essa magia acontece todos os dias. Para mim, e para o restante dos brasileiros que conseguem viajar de vez em quando pela EFVM, a magia é um momento fugaz que passa na janela, como as águas barrentas do Rio Doce.

Revista Oeste

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