Guerra na Ucrânia chega ao 100º dia sem fim à vista, alimentando tensão global
Até os primeiros mísseis russos atingirem a Ucrânia, na madrugada de 24 de fevereiro passado, havia um compasso relativamente conhecido a guiar a geopolítica.
Girando em torno da disputa mais aguda entre Estados Unidos e China, temperado pelo pós-pandemia, ele não incluía a maior guerra em solo europeu desde 1945 no cardápio. Havia, claro, sinais de que a situação se agravava nas fronteiras ucranianas, mas poucos esperavam algo na magnitude vista.
Erros de avaliação baseados em conceitos estabelecidos foram se sucedendo. A Rússia não dobrou Kiev em uma semana, quiçá em um mês. A dissolução das forças de Vladimir Putin nem tampouco ocorreu, como os moradores do leste e do sul ucranianos sabem bem.
Também não ruiu o sistema fossilizado da autocracia russa pelo desgosto das elites locais com o regime formidável de sanções econômicas aplicado sobre as instituições e as empresas do país.
Até aqui, a punição do Ocidente e seus aliados não logrou evitar uma morte na Ucrânia. O temor de que o cerco apenas jogue Moscou nos braços de Pequim numa nova ordem mundial é crescente e nem de longe infundado. Putin foi ferido, mas continua na ofensiva.
A preservação da popularidade do presidente segue o endurecimento de seu regime. O preço que gerações russas pagarão pelo delírio geopolítico do líder, a começar por seu proverbial cancelamento na arena internacional, ainda está por ser devidamente calculado.
Os cem dias da guerra consolidaram também algumas certezas. O impacto do conflito no mercado de energia e de alimentos disparou uma corrente inflacionária que, aliada a problemas diversos, arrisca empurrar o mundo para uma onda recessiva em 2023.
A crise se vê em bombas de gasolina brasileiras, nos conflitos do Peru, na crise alimentar que se insinua na África. Como no Apocalipse bíblico, os cavaleiros da fome, da guerra e da morte vagam —o da peste já estava entre nós.
Para alegria de milenaristas, até riscos de uma Terceira Guerra Mundial deixaram de ser fantasiosos.
Adicione-se a isso a percepção de insolubilidade. O ensaio de resolução das negociações de paz iniciais está à mão, mas é coalhado de entraves e depende de uma boa vontade de lado a lado ora inaudita.
Assim, a sugestão de uma guerra prolongada apenas faz crescer a convicção de que o planeta é um lugar bastante pior hoje.
Folha de São Paulo