Não há nenhuma pauta relevante na economia ou comércio para justificar a tresloucada viagem a Moscou
O presidente Jair Bolsonaro continua disposto a afundar a reputação internacional do Brasil e a usar toda a engrenagem diplomática do país em troca de um punhado de fotos e vídeos dos quais possa tirar proveito com seus eleitores mais radicais, que lhe garantem vaga no segundo turno do pleito de outubro, segundo as últimas pesquisas. É apenas sob essa perspectiva - meramente personalista - que se pode entender a insistência na viagem oficial para Rússia e Hungria, marcada para esta semana. O russo Vladimir Putin mobiliza suas tropas na fronteira com a Ucrânia. O húngaro Viktor Orbán, que ataca instituições e estimula o preconceito contra minorias, pode encerrar seus 12 anos de mandato daqui a menos de dois meses. Ele enfrentará, nas urnas, uma aliança opositora que vai de socialistas a conservadores e busca dar fim a seu governo cada vez mais autocrático.
Na tentativa de se contrapor à constatação de que está isolado, Bolsonaro quer tão somente posar ao lado de Putin, permitindo às milícias digitais tripudiar nas redes sociais e ostentar seu líder com algum peso-pesado da arena global. Uma “photo opportunity” pode resultar oportuna para o presidente e seus seguidores, mas não atende - de novo - aos interesses nacionais. Primeiro, porque a pauta da visita é oca. Não há previsão de assinatura de acordos. No máximo, caso os negociadores acelerem o ritmo, um sobre troca de informações sigilosas na área de defesa e outro sobre transferência de presos.
Segundo, porque os eventos econômicos e empresariais que serão realizados às margens da visita têm tudo para ser pouco produtivos. Eles têm, como justificativa, divulgar a carteira de concessões federais e identificar oportunidades de investimentos privados. No mundo real, a Rússia vem praticamente ignorando os leilões do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), pelo simples fato de que ela tem poucas operadoras para os ativos - como rodovias, portos, aeroportos, linhas de transmissão de energia. Os executivos russos que confirmaram presença em seminário de negócios da Apex já conhecem o Brasil, suas companhias têm escritórios instalados no país e não dependem de um coquetel ou da palestra de ministros para tomar decisões.
E em terceiro, principalmente, porque o momento não poderia ser mais inadequado: milhares de militares russos marcham perto da fronteira e ameaçam uma nação vizinha. Para uma diplomacia que sempre se pautou como construtora de pontes, para um país que assumirá em julho a presidência do conselho de segurança da ONU, só mina sua credibilidade.
Tampouco encontra amparo o argumento de que Bolsonaro quer dar mais atenção aos Brics. O governo brasileiro não teve nenhum pudor em atrasar a capitalização do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), uma das peças mais importantes do bloco, e vários de seus auxiliares - tardiamente demitidos - adotavam discurso sinofóbico. A China, principal parceira comercial e uma das maiores fontes de investimento estrangeiro no Brasil, tem sido alvo de diatribes e até insultos preconceituosos desde 2019. O fundo bilionário para financiar projetos de desenvolvimento e obras de infraestrutura, prometido por Pequim há sete anos, não poderia mesmo sair do papel em ambiente tão tóxico. Desnecessariamente, enquanto durou a administração Donald Trump nos EUA, o Brasil alinhou-se à Casa Branca em brigas que opunham americanos e chineses.
Em sua política externa, Bolsonaro fez um pacote quase completo de isolamento. Ofendeu a primeira-dama da França, distanciou-se de outros países europeus que apoiavam o combate ao desmatamento na Amazônia com doações financeiras, foi o último chefe de Estado do mundo ocidental a cumprimentar Joe Biden pela vitória em 2020, criou tensões inúteis com Alberto Fernández na Argentina, fez o Itamaraty segurar quatro dias uma nota oficial parabenizando Gabriel Boric pela resultado da eleição no Chile.
O presidente já criticou o multilateralismo em plena tribuna na ONU e seu governo omitiu o aumento da destruição de florestas na COP26, do qual já tinha conhecimento, enquanto se comprometia com metas para 2030 e 2050. A imagem do Brasil, ligada em boa parte do último século à de um país que soube usar a interlocução privilegiada e fóruns multilaterais em prol de seus interesses, vai se esvaindo. No lugar, surgem aspereza e brutalidade. Agora, Bolsonaro pode deixar o Brasil aparecer ao lado de um provocador de guerras - talvez até na semana da invasão à Ucrânia -, sem nenhuma pauta relevante na economia ou no comércio para justificar a tresloucada viagem a Moscou.
Valor Econômico