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domingo, agosto 01, 2021

Transe sem fim: o teatro dos incendiários fanáticos da memória histórica


WELLINGTON FONTES MENEZES*

1. O passado que não pode ser esquecido

Pouco depois da subida ao poder na Alemanha, entre maio e junho de 1933, em diversas cidades alemãs, os nazistas fizeram uma grande queima de “livros subversivos” para mostrar publicamente o novo horizonte cultural autoritário e nefasto que iria se estabelecer naquele país até a derrocada do Terceiro Reich, em 1945.

O tenebroso episódio entrou para a História como o “Bücherverbrennung”, a grande queima de livros orquestrada, particularmente, pelo Ministro da Propaganda do Terceiro Reich, Joseph Goebbels (1897-1945), um dos maiores mentores do Partido Nazista. Na prática, foi uma demonstração de força do novo regime que se erguia, mudando para sempre a História alemã e, ao mesmo tempo, uma revanche nazista contra a “intelligentsia” reinante na tão odiada República de Weimar.

Diante do cenário fantasmagórico, Sigmund Freud (1856-1939), o fundador da Psicanálise, ao saber que seus livros arderam nas chamas da inquisição nazista, comentou, em tom jocoso, que seria um “avanço” ter queimado apenas seus livros, uma vez que poderia ter sido o próprio Freud a queimar nas chamas em tempos mais remotos. Neste sentido, merece destaque um antigo alerta do poeta alemão, Christian Johan Heinrich Heine (1797-1856): “Onde se queimam livros, acaba-se queimando pessoas”.

Anterior a este episódio, na Europa, entre o final da Idade Média e o Renascimento, foram inúmeras as pessoas suspeitas de heresia, blasfêmia, bruxaria e atentado às “Sagradas Escrituras” que foram parar na fogueira, durante a Santa Inquisição, um regime de coerção moral e religiosa imposto pela Igreja Católica Romana. Entre muitos selvagens assassinatos em nome de Deus, um dos ilustres personagens quase queimado, foi Galileu Galilei (1564-1642), destacado pesquisador e um dos pais da Física Clássica, simplesmente por publicar seus trabalhos de estudo dos astros, os quais se opunham aos conceitos ptolomaicos defendidos pela Igreja Católica.

Voltando à Alemanha nazista. Posteriormente, os símbolos do passado foram destruídos para impor a nova arquitetura da estética ideológica do nazismo. Não tardou muito para criar metástase: do culto da queima de livros para a construção de campos de extermínio, cujo dantesco símbolo maior foram as câmaras de gás, usadas, sistematicamente, para matar muito mais rápido aqueles que eram odiados pelo regime de Adolf Hitler (1889-1945).

Uma verdadeira indústria do “genocídio assistido” foi instalada nestes diversos campos de extermínio espalhados em território ocupado da Polônia para matar, preferencialmente, judeus, sem contar outros milhares de ciganos, comunistas, socialistas, homossexuais e qualquer crítico, desafeto ou que ameaçasse o regime ditatorial comandado por Hitler. Ao todo, estima-se que cerca de três milhões e meio de pessoas foram exterminadas pela bestial política da “Solução Final”.

2. Incinerar como espetáculo

A chamada “sociedade do espetáculo”, descrita por Guy Debord, é aquela que opera pela subjetividade performática e ilusionista, em detrimento da materialidade da realidade. O consumismo capitalista opera em todas as esferas da vida, inclusive na atuação política que engloba desde movimentos sociais à partidos políticos. Queimar patrimônio histórico foi uma prática de nazistas e negacionistas em busca de colocar uma pá de cal no passado e apagar a História da memória das novas gerações.

Nada de novo no “front”! Neste sábado, 24 de julho, mais um dia nacional de protestos populares contra o desgoverno genocida de Bolsonaro, ao parasitar a manifestação paulistana, um grupo de fanáticos ateou fogo na estátua de Borba Gato, localizada no bairro de Santo Amaro, zona sul da cidade de São Paulo. A doença da destruição de patrimônio histórico não é uma particularidade psicótica nacional, mas está sendo talhada por um autoritarismo protofascista de identidades cada vez mais alucinógenas. É aberrante o jorro de ignorância aliada ao anacronismo da visão de mundo de militantes que se preocupam mais em fazer “performance” sensacionalista do que compreender os processos históricos.

Vale destacar que na controversa trajetória do bandeirante paulista, Manuel de Borba Gato (1649-1718) nunca foi uma figura exemplar, assim como diversas outras em qualquer parte do mundo. Todavia, é preciso compreender o significado histórico dos personagens antes de colocar o legado histórico no fogo do purgatório da Santa Inquisição do negacionismo e estupidez. Invocar, messianicamente, em uma espécie de “purificação histórica” é típico dos movimentos fascistas que buscavam destruir a História para inventar e entronar outra megalomaníaca no lugar. Salienta-se: não é o desejo de “defender” a estátua, mas se posicionar contrariamente a atitudes autoritárias, irracionais e reacionárias. Ao buscar destruir o patrimônio histórico, se desvela um sintoma do modelo fascista de ocultar a verdade histórica e dar vazão a um revisionismo delirante e criminoso do passado.

Por outro lado, em nome de uma retórica marcada por uma neurose obsessiva persecutória, no campo do paiol de identidades fabricadas pela onda da Pós-modernidade, seus militantes enxergam racismo, machismo, fobias em todos os lugares, inclusive em estátuas históricas situadas em locais públicos. Além do vandalismo do patrimônio histórico, o fanatismo militante identitário fez fotocópia dos estratagemas nazistas, especialistas em destruição da memória, para ocultar o passado com um irresponsável e abobalhado “ato revolucionário”, contribuiu para que a História seja incendiada da realidade e jogada para debaixo do tapete da ignorância.

Na falta de horizontes mais realistas, uma parte das esquerdas bateu palmas para um troglodita esquerdismo circense. Esta mesma esquerda que se julga “ilustrada” se conforma com um estranho gozo protofascista de queimar patrimônio histórico (seja ele nefasto ou não). Ao incendiar a estátua de Borba Gato, os responsáveis, possivelmente, acreditaram estar “purificando” a História dos indesejáveis “seres escravocratas”. Na lógica da “purificação histórica”, qual serão os próximos alvos? Monumentos, museus, praças com nomes ou designações “não-purificados” e, segundo a doutrina do fanatismo identitário, qualquer coisa que alucina, poderá ser o “alvo”! Cabe ainda uma pergunta pertinente: quem escolhe quais estátuas devem “viver” e quais devem ser incineradas nas labaredas da Santa Inquisição das identidades narcísicas que se julga juiz absoluto para promover uma suposta “reparação histórica”?

O caminho da bestialidade fanática é conhecido de forma atemporal. A inquisição do fanatismo identitário neoliberal do jardim da infância queima hoje estátuas, depois museus e, logo chegará às pessoas. No curso da História, não existe “purificação histórica”, tal como os nazistas pretendiam, mas as decorrências dos processos históricos que precisam ser bem entendidas por todos aqueles que vivem sobre a Terra, sob o risco de serem engolidos pela alienação social.

3. Qualquer abdução que alucina

No meio de uma histórica pandemia viral, na qual o criminoso governo de Bolsonaro colocou terra sobre 550 mil mortos até o momento, o episódio do incêndio da estátua de Borba Gato merece, ao menos, uma atenta reflexão e responsabilidade histórica, particularmente, no campo progressista. Diante do esvaziamento programático das esquerdas, impulsionada e patrocinada pelo capital, ganhou força parasitária o besteirol fanático protofascista identitário como cavalo de Tróia dentro do campo da própria esquerda.

Por incrível que possa parecer, desde 2013, em particular, há um insólito caminho pelo qual o campo da esquerda brasileira não se cansa de dar farta munição ideológica para a direita e seus extremos operarem seus estratagemas. Basta lembrar os episódios do baluarte da alucinação dos “vinte centavos” que foram manejados pela direita e resultaram na abertura da Caixa de Pandora dos zumbis que estavam no armário do autoritarismo brasileiro. Para quem não se recorda, em junho 2013, os protestos estudantis puxados pelo então “Movimento Passe Livre (MPL)”, criticaram o aumento das passagens de transportes públicos na cidade de São Paulo. Para seus entusiastas, tal movimento ficou conhecido como “jornadas de junho”.

Curiosamente, os protestos pontuais que estavam circunscritos em São Paulo foram reverberados para todo o Brasil, constituindo-se, então, em uma das maiores alucinações histéricas coletivas de todos os tempos. O senso comum dominava o transe coletivo, e muitos saíam para as ruas para protestarem em um objetivo específico, logo a narrativa midiática encontrou um alvo que estava guardado para ser atacado: o Partido dos Trabalhadores no poder desde 2003. A partir daí, o coreto estava armado para uma das maiores construções golpistas de todos os tempos no Brasil e com total organização e cumplicidade dos grandes meios de comunicação.  

O fato era que, pela primeira vez na História do Brasil redemocratizado, um governo do Partido dos Trabalhadores (PT) sofreu um violento protesto, tal como foi contra o prefeito Fernando Haddad por parte de uma militância ruidosa. A bandeira dos “vinte centavos” foi empunhada e representava um acréscimo nas novas tarifas de ônibus da cidade de São Paulo. Uma ocasião perfeita para um grande golpe na democracia brasileira. Lembrar que a isca dos “vinte centavos” foi encampada por parte das esquerdas e, por sua vez, a direita acabou abocanhando todo o poder que estava queimando nas mãos do Partido dos Trabalhadores na gestão de Dilma Rousseff, culminando no trágico golpe de Estado de 2016. Dos irritadiços estudantes pseudo-revolucionários de 2013 aos alucinados da extrema direita que saíram das catacumbas e se enrolaram na camisa amarelada da Seleção Brasileira pedindo o “Fora Dilma”, o país passou por um processo histérico e traumático que conduziu ao poder o mais ignorante representante do “baixo clero” da Câmara dos Deputados, Jair Bolsonaro entronado presidente em 2018. Por sinal, a tragédia do cavalo de Tróia dos “vinte centavos” se tornou inesgotável para as alegres comadres esquerdistas e nenhuma lição foi aprendida!

Para além do Borba Gato, a suicida cegueira política se tornou a matriz da ação atabalhoada das esquerdas carentes de pragmatismo e ideias sobre a própria mudança da realidade. Quanto mais alucinada a “performance” de grupos orientados por uma histeria narcisista e bajulados pelo capital em nome de uma oportunista “estratégia da vitimização”, mais as esquerdas, globalmente, abraçam como se fosse a “vanguarda do movimento”. Portanto, diante deste cenário de alucinação ideológica das esquerdas, reduzidas à esperança messiânica e à “performance identitária”, temos uma emblemática atuação da chamada “Síndrome de Estocolmo”, onde as vítimas se identificam com seus algozes. 

Diante das patacoadas de parte significativa das esquerdas que segue produzindo péssima leitura de conjuntura política, quem ganha fôlego é o projeto de destruição da sociabilidade brasileira. Nas mãos da horda de Bolsonaro, o Brasil continua sua escalada histórica de derretimento em todas as esferas possíveis e ainda se mantém no cargo por que é apoiado por uma burguesia tão medíocre quanto o próprio representante nacional das milícias do Rio de Janeiro no Planalto.

É preciso lembrar ainda que um período eleitoral é sempre um paradoxo, poderá ser longe para quem está em julho de 2021, mas muito próximo de 2022. Em curto prazo, poderá Bolsonaro, o insaciável Centrão e a rapinagem dos militares ganharem fôlego para emplacar a eleição do próximo ano ou a tentativa de um golpe, o que for mais conveniente primeiro em nome da queima total da fragilizada democracia brasileira. A prudência política requerer mais pragmatismo e menos alucinação em tempos de turbulência política e apodrecidos ares fascistizantes na sociedade.

Aos alegres apoiadores do circo do irracionalismo performático, pergunta-se: querem que a boçalidade infanto-juvenil protofascista se transforme em estilingue de batalha política? Ademais, segue mais uma questão: é pela via do irracionalismo que o campo da esquerda quer travar batalha contra o fascismo miliciano? E, por fim, mais uma indagação com o propósito de ser uma sugestão reflexiva: será que não aprenderam nenhuma lição do teatro catastrófico de 2013, com os desfiles juvenis das “jornadas de junho”, as que serviram como “boi de piranha” para pavimentar o trator golpista da extrema direita no Brasil?


* WELLINGTON FONTES MENEZES é Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e Pesquisador do Grupo de Pesquisa “Democracia, Cidadania e Estado de Direito” (DeCiED/UFF).

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