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quinta-feira, fevereiro 03, 2011

STJ enfraquece Lei Maria da Penha

Justiça suspende processo contra marido que agrediu esposa pelo fato de o crime ter pena inferior a um ano. Decisão causa polêmica e divide especialistas

Publicado em 03/02/2011 | Maria Gizele da Silva, da sucursal
Fale conoscoRSSImprimirEnviar por emailReceba notícias pelo celularReceba boletinsAumentar letraDiminuir letraPonta Grossa - Uma decisão recente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) deverá mudar o entendimento em relação à Lei Maria da Penha, em vigor há quatro anos no país. Os ministros do STJ decidiram que um homem que tentou sufocar a companheira tem direito à suspensão condicional do processo pelo fato de a pena prevista para o crime ser inferior a um ano de prisão. A decisão que poderá ser estendida para casos com penas semelhantes no Brasil. Para entidades de combate à violência contra a mulher, a medida é um retrocesso. Já juristas avaliam que a possibilidade de reabertura do processo bastará para intimidar os agressores.

A Lei 11.340, batizada de Maria da Penha em homenagem à farmacêutica que ficou paraplégica depois que seu ex-marido tentou matá-la, tirou os casos de violência doméstica dos Juizados Especiais e os levou para as varas criminais. As penas ficaram mais rígidas e a proteção às vítimas foi estendida. No entendimento do STJ, a suspensão não afeta a lei e mantém o cunho educativo da norma, ao estabelecer que o processo será reaberto em caso de reincidência.

Entenda o caso
O STJ se baseou em uma lei de 1995 para suspender o processo do homem acusado de tentar estrangular a mulher.

- Prevista na Lei 9.099/95, a suspensão condicional do processo é uma forma de solução alternativa para problemas penais. O objetivo é evitar o início do processo em crimes cuja pena mínima não ultrapassa um ano.

- O acusado não pode ser reincidente em crime doloso, nem estar sendo processado por outro crime.

A suspensão também pode ser oferecida em crimes de menor potencial ofensivo.

- Depois de o processo ser suspenso, o acusado passa por um período em que deve cumprir as obrigações impostas no acordo. Se o prazo passar sem que ele descumpra as obrigações, fica decretada a extinção da punibilidade.

- No caso avaliado pelos ministros do STJ, o acusado beneficiado pela suspensão do processo não pode reincidir. Se ele cometer outra agressão contra a companheira, o processo será reaberto.

Notificação de casos vai ajudar na prevenção
Para ter um retrato fiel da violência doméstica ou sexual no Brasil, o governo federal publicou, no último dia 25, a Portaria 104 que determina a notificação obrigatória de todos os casos de agressão contra mulheres e crianças atendidos em hospitais ou observados nas escolas. Com as estatísticas em mãos, as secretarias municipais e estaduais de Saúde poderão trabalhar políticas de planejamento e prevenção. O Paraná já executa preliminarmente essa sondagem desde o ano de 2007.

A comunicação oficial desse tipo de violência incrementa a Lista de Notificação Compulsória (LNC) do Ministério da Saúde, que passa a ter 45 doenças ou agravos, que vão desde a dengue até a Aids. A portaria dá força a decisões anteriores de notificação de casos de violência contra a mulher e a criança. A Secretaria de Estado da Saúde do Paraná já classifica os casos de violência de menor gravidade. De 2007 até o final do ano passado, 5,2 mil casos foram notificados.

Hoje a coleta é feita em 131 cidades (32,8% dos municípios paranaenses) e serve para começar a traçar um perfil das vítimas. No ano passado, por exemplo, das 3.004 notificações, 68,5% se referiram às mulheres e 31,2% aos homens. Segundo a chefe do departamento de Doenças Transmissíveis da Superintendência de Vigilância e Saúde da Sesa, Ivana Kaminski, a portaria é um avanço. “O que já fazíamos espontaneamente agora vamos fazer por força de lei, buscando a universalização desse registro no estado”, afirma. Segundo ela, a mudança não deve elevar custos e exigir contratações, pois as equipes vão apenas acrescentar mais um tipo de notificação à listagem oficial.
Essa é a avaliação do professor de processo penal da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Jacinto Coutinho, para quem a decisão do STJ é coerente. Ele lembra que a possibilidade da reabertura do processo, caso a vítima volte a ser perseguida, pode inibir o agressor. “Parece-me que a sociedade está assentada na ideia de gozo pela punição. O que é mais importante: punir a pessoa ou evitar que a agressão volte a acontecer?”, questiona. Ele diz que não atende clientes acusados desse tipo de crime quando está advogando, mas considera necessário ser “racional” diante do entendimento da lei.

A promotora do Juizado da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (a única do Paraná e com sede em Curitiba), Cláudia Cristina Martins, considera a suspensão “uma resposta estatal mais branda”, mas avalia que a possibilidade de reabertura do processo “tem caráter repressivo e educativo”. “Tem-se que os cidadãos, sabendo que a resposta penal virá, sensibilizar-se-ão e deixarão de praticar atos que possam ser considerados crimes”, resume.

Para Ana Teresa Iamarino, coordenadora geral de Acesso à Justiça e Combate à Violência contra a Mulher da Secretaria de Políticas para as Mulheres, do governo federal, a decisão do STJ é um retrocesso. “A medida está equivocada, não considera todo o fenômeno da violência doméstica e trata a situação como um crime eventual”, diz. Ana Claudia Perei­ra, consultora do Centro Feminista de Estudos e Assessoria, do Distrito Federal, tem a mesma opinião. “A sociedade é muito machista e isso não isenta os poderes constituídos, em todos os órgãos encontramos decisões que não respeitam os direitos das mulheres.”

Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), dos 278.871 processos abertos nos quatro anos de vigência da lei, 3.203 foram suspensos por motivos diversos.

“Sei do risco que estou correndo”, diz ameaçada

Clara (nome fictício) tem 45 anos e é aposentada por invalidez. Mora em Ponta Grossa, na região dos Campos Gerais, em uma modesta casa de madeira alugada, com um filho adolescente e vários cães e gatos que pegou para criar. Sentiu que precisava de uma companhia e começou a namorar o pintor João (nome fictício), oito anos mais novo. Ele parecia uma boa pessoa, até Clara perceber que seu comportamento se alterava com o consumo de bebida alcoólica. Logo descobriu que ele era ex-presidiário e respondia em liberdade pelo crime de assalto a mão armada.

João não aceitou o rompimento e começou a fazer ameaças e danificar os móveis da casa. “Ele nunca saiu no tapa comigo, mas quebrou fogão e geladeira e ameaçou a mim e ao meu filho”, diz Clara. Mesmo com medo de represálias, ela registrou dois boletins de ocorrência na Delegacia da Mulher.

O pedido de afastamento do lar feito pela delegacia demorou 20 dias para sair da vara criminal. “Acho isso um absurdo. Como alguém que denunciou a pessoa vai ficar morando embaixo do mesmo teto dela? É como deixar o cão cuidando do gato”, avalia. João assinou a ordem de afastamento, mas voltou para casa quando o oficial de Justiça virou as costas.

A medida lhe custou a liberdade. João foi preso por descumprimento da ordem judicial e ainda vai responder pelos crimes de danos, ameaça e perturbação de sossego. Como ele ainda não foi julgado, não se sabe se poderá ser beneficiado com a suspensão do processo. Clara tem uma certeza: “Eu sei do risco que estou correndo”, afirma. “Denunciei ele, mas não vou me mudar daqui. Quem foge uma vez foge sempre.” Ela diz que só conseguiu voltar a dormir quando o ex-companheiro foi preso. “Coisa que há muito tempo eu não fazia”, afirma.
Fonte: Gazeta do Povo

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