A farsa da esquerda lulista, que trata Putin e Jinping como se fossem alunos de Marx, torna a tal da democracia do amor uma piada soturna.
Por José Nêumanne
A poção mágica para fazer o arcabouço (que Bonifácio Sobrinho chama de cala boca) fiscal é o ai-jesus do discurso populista: “pobre vai pagar menos imposto e rico vai ser tributado”, o que não tem acontecido com muita freqüência nesta Pindorama da privilegiatura estatal. O falso passe de mágica anunciado pelo candidato a taumaturgo Fernando Haddad concentrou-se na anunciada isenção tributária de produtos comercializados entre pessoas físicas chinesas e brasileiras por até US$ 50 (cerca de R$ 250 no câmbio que flutua sem casco nem teto algum).
O anúncio contava com a conveniência da ausência do chefão chefiando robusta (para dizer o termo da moda, no mínimo figurativo) comitiva em China e Arábias. O chefe desfez a quimera. “Nada disso, vai atingir o cidadão desprovido de bens”, que costuma apenar essas aleivosias votando no partido do contra. Atribuiu-se-a à mão leve de Janja, mas logo se chegou ao consenso de que o chefe do Executivo não precisa de cochicho de alcova para desfazer ilusões do facilitário poliburocrático.
Carlos Andreazza resumiu texto realista publicado no Globo da quarta-feira 19 de abril de 2023 em tuíte: “Lula desistiu de taxar vendas on-line até U$ 50. O recuo, porém, mais do que evidenciar o discurso trapaceiro e expor a turma agora rebolando para se ajustar à nova ordem, expressa as dificuldades de o governo estruturar – alicerçar – o arcabouço fiscal.” Ora, meus amigos, meus inimigos, noviços da burocracia fiscalista podem cair nessa lorota, não vetustos analistas. Onde diacho o governo ocupado pelo Partido dos Trabalhadores (PT), mas comandado pelo Centrão parlamentar do alagoano Artur Lira, iria encontrar jeito de cobrar essa taxa? Quantos milhões de fiscais e outros tantos de reais seriam gastos nessa aventura? Melhor voltar para o ramerrame de cada dia: imposto bom é o cobrado na fonte, ou seja, na empresa empregadora direto na folha de pagamento do escorchado contribuinte de sempre, o trabalhador de carteira assinada, ainda escorado no arcabouço sindical de titio Gegê.
Mas ainda falta um argumento, que depende de outras aplicações. A isenção premia uma trapaça em que uma venda é tratada como se fosse um troca-troca de cidadão para cidadão. O fim da tal isenção atingiria o casco da escravatura. E este torna o mundão de meu Deus de hoje em dia, não no mercado maior da chinesada, mas, sim, na transação entre a senzala produtiva do vendedor e o preço praticamente sem custo que chega ao consumidor além das grandes fronteiras do país mais populoso do mundo.
O neovelho império do extremo Oriente não é mais o contendor do império soviético, desmanchado na dita Revolução Cultural, nem o alvo da cobiça que excitou as narinas de Lord Kissinger. Xi Jinping é o capataz de uma ditadura revelada como fascista, ou seja de direita, no volumoso e lúcido tratado iluminado do empresário e escritor baiano Joaci Góes (Esquerdas e Direitas, Topbooks, 2022). Quem acredita na economia liberal dos velhos pais fundadores, gerida por uma democracia de cunho socialista, pode confundir padre com panda. A trágica verdade é que a atualidade mundial não é uma babélica barraca de quinquilharias tecnológicas com laboratórios habitados por vírus fujões. Como o tal de coroné vírus, ao qual o capitão Jair bate até hoje continência, sem a menor disciplina verbal, ora veja. O neovelho mundo, que virou o novo titã da indústria, do comércio e da alta tecnologia, finge que as centenas de milhões de escravos de olhos puxados são uma nova classe operária barata e operosa. Será que não vai aparecer um Joaquim Nabuco para abrir-lhes os olhos, hein? A herança de Deng Xiaoping é o realismo brutal, desumano e biliardário da potência sem medidas de uma ditadura escravocrata, que nem depende de comprar servos na África e transportá-los em naus.
Merval Pereira, do Globo e da Academia Brasileira de Letras, fez um comentário na CBN nesta quarta, 19, alertando para a cegueira da esquerda da democracia do amor de Lula em relação a outra ilusão de lado. O ex-KGB bolchevique é um cínico fascista que zomba de OTAN, ONU e do Bispo de Roma, como seu antecessor, Stálin, fazia há um século. Confundi-lo com um comunista é a mesma coisa que atribuir a Mussolini, vencido fundador dos fasci di combattimenti, a condição de caudatário do socialista Giacomo Matteotti, massacrado por facínoras prestando serviço ao Duce.
Os noticiários e as teses de História precisam ser refeitas: Serguei Lavrov humilhou o Brasil desembarcando de jeans e tênis. E depois foi cobrar dívidas que não serão pagas à Rússia pelos ex-comunistas, que agora seguram a mão direita enluvada do Dr. Strangelove, numa das melhores e mais assustadoras comédias do cinema, para evitar que ela faça a saudação nazista e o estrangule. No Brasil a postura belicista pró-russa do presidente impediu que se percebesse que Venezuela, Cuba e Nicarágua, que o criado falante de Putin visitou depois, formam um novo eixo. Nesta nossa democracia do amor é uma indecifrável anedota sinorrussa contada em castelhano de compadritos. A bênção, Borges.
Revista Crusoé