Por Josias de Souza
Num esforço para imunizar Bolsonaro contra a desmoralização no caso Covaxin, o governo construiu no ano passado um enredo desconexo. O esforço revelou-se desnecessário.
A Polícia Federal chegou à inusitada conclusão de que o presidente da República não comete crime de prevaricação quando ignora uma denúncia de corrupção que lhe chega ao conhecimento.
O chefe da nação pode ser acusado, no máximo, de descumprir um "dever cívico", anotou o delegado federal William Tito Schuman Marinho no seu relatório final. Em pensar que o governo havia elaborado três versões para blindar Bolsonaro!.
O presidente deu de ombros para uma denúncia. Foi levada à biblioteca do Alvorada pelo deputado bolsonarista Luis Miranda e o irmão dele, Luis Ricardo, que flagrou a tentativa de pagamento antecipado de US$ 45 milhões por uma vacina indiana mais cara do que as outras e jamais aprovada pela Anvisa.
Diante do escândalo, o então ministro palaciano Onyx Lorenzoni e o coronel Elcio Franco, número 2 da gestão do general Eduardo Pazuello na Saúde, desqualificaram os irmãos Miranda. Acusaram-nos de usar uma nota fiscal falsa. Não colou. O documento era autêntico.
Alegou-se, então, que Bolsonaro avisou Pazuello sobre os malfeitos. Fez isso às vésperas da saída do general do ministério da Saúde. Não convenceu. Informou-se na sequência que Pazuello encomendou providências ao seu braço direito Elcio Franco, que permaneceria por mais alguns dias na pasta.
Nessa versão, o coronel teria constatado, com a velocidade de um raio, que não havia irregularidades na compra das vacinas que custariam R$ 1,6 bilhão ao governo. Posteriormente, Marcelo Queiroga, o substituto de Pazuello anunciaria, por irregularidades insanáveis, a anulação do contrato. Esse balé de elefantes revelou-se um gasto inútil de criatividade e energia.
O inquérito policial foi remetido nesta segunda-feira à ministra Rosa Weber, do Supremo. Descerá também à mesa do procurador-geral Augusto Aras. O delegado William Marinho dispensou até o interrogatório do presidente. No final de um processo com mais de 2 mil páginas, anotou que não faz parte do "dever funcional" de Bolsonaro "comunicar eventuais irregularidades de que tenha tido conhecimento" aos órgãos de investigação como a Polícia Federal.
Se prevalecer essa posição, ficará entendido que todo funcionário público tem o dever de agir quando souber de irregularidades, sob pena de prevaricar. Mas o presidente, servidor número um do país, pode ignorar os malfeitos ao redor. Não será acusado senão de desatenção com o seu "dever cívico".
Não é que o crime não compensa. A questão é que, quando compensa, é chamado de descuido cívico.
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