Ao tratar Putin como ícone conservador, Bolsonaro exemplifica o que comentei no último artigo sobre as diferenças entre as ideias de intelectuais como Edmund Burke (e os movimentos políticos inspirados por elas) e discursos tipicamente bolsonaristas como a pregação antivacina.
Por Alexandre Borges
Na última quinta-feira (27), um apoiador do cercadinho perguntou a Jair Bolsonaro se o presidente russo era "gente da gente". Sem hesitar, responde: "Ele é conservador", num dos momentos mais curiosos do seu mandato. No panteão dos vilões soviéticos, é provável que um ex-chefe da KGB esteja no topo da lista, o que não impediu o presidente brasileiro, um autodeclarado anticomunista, de se referir a ele com admiração e afeto. De tédio, com certeza, um analista político não morre por aqui.
Vladimir Vladimirovitch Putin, 69 anos, comanda seu país com mão de ferro desde a renúncia do antecessor em 1999 e concentra tanto poder que faria um antigo czar russo parecer o Rei Momo. Ele não apenas preside seu país, Putin é a Rússia. A força, a estabilidade e a longevidade do seu poder é o que gera tantos suspiros em candidatos a autocrata no mundo inteiro.
De origem humilde, o menino de São Petersburgo fascinado por filmes de espionagem que queria ser agente secreto foi muito mais longe que seu sonho de infância mais delirante. Aos 15 anos, bateu na porta da KGB pedindo para ingressar na corporação, mas foi aconselhado a estudar direito e voltar depois de formado. Aos 23 anos, já advogado, foi aceito no mais temido serviço secreto do mundo, onde fez carreira e terminou como diretor-geral em 1998. Apenas um ano depois, o fraco e debilitado presidente Boris Yeltsin (1931-2007) aponta o desconhecido burocrata como primeiro-ministro e o povo se pergunta: "quem é Putin?" Hoje não há um russo que não saiba a resposta.
O país mais extenso do mundo é uma democracia de fachada, na prática uma ditadura que não reconhece qualquer limite para controlar o destino da população. Putin acredita em dirigir a Rússia manipulando de forma arbitrária e personalista todas as instituições de governo e da sociedade civil, incluindo a igreja e a imprensa, perseguindo e eliminando adversários e dissidentes quando necessário, fazendo do resultado das eleições o mais previsível possível. Na Rússia, não há surpresa quando as urnas são abertas.
Assim como no período soviético, Putin e seu círculo íntimo acreditam que o país deve ser comandado por um clube fechado de patriotas não-eleitos e suficientemente treinados para identificar, localizar e eliminar supostas ameaças à segurança nacional. A economia também não foge à regra.
A Rússia tem um capitalismo de compadrio, tão corrupto quanto se pode imaginar, baseado em óleo e gás, lembrando países como Arábia Saudita e Venezuela, tão distante quanto possível das economias de livre mercado. Se você quer ter uma ideia de como a corrupção está incrustada na máquina estatal russa, veja o ótimo documentário original da Netflix "Icaro".
Putin, forjado na cultura paranoica da KGB, acredita que qualquer oposição ao regime é suspeita e, provavelmente, organizada por espiões a serviço de inimigos externos. Jornalistas, intelectuais, empresários e ativistas foram perseguidos, presos, exilados e alguns mortos durante seu governo. Em vez da violência em massa dos tempos de Stálin, o atual regime russo investe em ações localizadas e direcionadas que eliminam alvos específicos e geram o terror no resto da população.
O atual líder russo também acredita firmemente em influenciar diretamente o destino dos países vizinhos que formavam a ex-URSS. Uma das declarações mais famosas de Putin foi classificar o fim da União Soviética como a maior catástrofe geopolítica do século passado. Sua obsessão por tutelar a Ucrânia faz parte desta visão que tem como principal ideólogo o sinistro Alexandr Dugin, uma espécie de Rasputin redivivo.
Ao visitar a Rússia num momento de tamanha tensão regional, Bolsonaro espera sinalizar para seus apoiadores que não está isolado no mundo e que, ao menos, há uma afinidade de algumas de suas pautas com a de outros líderes "conservadores", na versão bem particular que o presidente brasileiro, seus ideólogos e propagandistas dão ao termo e que nada tem a ver com o conservadorismo de raiz britânica que fingem admirar.
Ao tratar Putin como ícone conservador, Bolsonaro exemplifica o que comentei no último artigo sobre as diferenças entre as ideias de intelectuais como Edmund Burke (e os movimentos políticos inspirados por elas) e discursos tipicamente bolsonaristas como a pregação antivacina.
Quem suspira por Putin diz mais sobre si do que sobre o super czar do século XXI. Putin não é apenas o malvado favorito da vez, ele foi onde todo governante com pendor antidemocrático e antiliberal sonharia ir. A história não será simpática com nenhum deles.
Gazeta do Povo (PR)