Diretrizes do novo currículo escolar orientam professores de História a não falar sobre derrotas militares do país, apenas vitórias
Por Camilla Veras Mota, em São Paulo
"Pode-se dizer que, 30 anos depois da mudança do regime em 89, voltamos no tempo no que diz respeito aos livros didáticos. Estamos na mesma situação em que estávamos durante o regime comunista."
Assim resume o presidente da Associação de Professores de História da Hungria, László Miklósi, quando questionado sobre as mudanças recentes no sistema de ensino de seu país.
Desde que chegou ao poder em 2010, o líder populista de direita Viktor Orbán vem centralizando poder em torno de si e de seu partido, o Fidesz, e tirando autonomia do Judiciário, da imprensa e, mais recentemente, das escolas e universidades.
O presidente Jair Bolsonaro fez nesta quinta-feira (17/2) sua primeira visita oficial à Hungria. Em declaração à imprensa, disse haver uma proximidade ideológica entre os dois países, que, segundo ele, seriam representantes de valores como Deus e família.
"Considero seu país o nosso pequeno grande irmão. Pequeno se levarmos em conta as nossas diferenças nas respectivas extensões territoriais e grande pelos valores que nós representamos que podem ser resumidos em quatro palavras: Deus, Pátria, Família e Liberdade", afirmou Bolsonaro.
Em 2019, o governo húngaro tomou dos municípios o controle sobre as escolas públicas do país e substituiu os livros até então publicados por diferentes editoras independentes por obras do Instituto Húngaro para Pesquisa e Desenvolvimento em Educação (OFI, na sigla em húngaro).
A área de História foi uma das que gerou maior preocupação entre os professores. Na avaliação de Miklósi, que dá aulas há mais de três décadas, o conteúdo foi comprometido para que se encaixasse na ideologia nacionalista e na visão de mundo do primeiro-ministro e de seu grupo.
"Nos tempos do comunismo as escolas só usavam os livros publicados pelo Estado - e estes eram repletos de conteúdo ideológico", pontuou em entrevista à BBC News Brasil.
"Houve a mudança de regime, passou a existir um mercado de livros didáticos, com diversidade, uma pluralidade de publicações. E agora estamos de volta àquele cenário em que as escolas só podem usar livros publicados pelo Estado, cheios de conteúdo ideológico."
O professor cita alguns exemplos.
Um deles envolve a própria fundação da Hungria. Conforme a teoria mais aceita, em 895 tribos húngaras nômades chegaram à Bacia do Cárpato "empurradas" pelos ataques de outras tribos nômades que vinham conquistando novos territórios.
"Mas essa narrativa não é gloriosa o suficiente para os ideólogos do governo", diz o professor, de forma irônica. "Então os livros passaram simplesmente a omitir essas informações."
Nos capítulos sobre história medieval, ele acrescenta, uma parte do conteúdo é reservado aos monastérios e às santas, retratadas como exemplo do que as mulheres húngaras deveriam aspirar a ser.
"E há uma ênfase grande em história militar, em oposição à história que retrata as pessoas comuns, como era a vida dessas pessoas. Essa era uma tendência que vinha ganhando protagonismo até a chegada do atual regime e que foi colocada de lado para, mais uma vez, dar lugar a uma narrativa oficial", avalia o professor.
A mensagem "patriótica" também interfere na forma como os imigrantes são retratados. Logo após a adoção dos livros didáticos promovidos pelo governo, uma reportagem da CNN chamou atenção para um livro de história para alunos de ensino médio que trazia discursos do primeiro-ministro sobre os "perigos da migração" e em que afirmava que a Hungria era um país "homogêneo".
O ataque aos imigrantes é recorrente no discurso de Orbán, que em 2015, no auge da crise migratória que levou milhões de refugiados à Europa, ordenou a construção de uma controversa cerca de ferro na fronteira entre Hungria e Sérvia para evitar que os migrantes passassem pelo território húngaro.
Os problemas com os livros didáticos vão além de questões da esfera ideológica, diz a Átlátszó, organização sem fins lucrativos que monitora o setor público no país. Em um relatório publicado no início deste ano, a entidade chama atenção para uma série de erros "práticos" nos novos livros de história, como a localização de cidades nos mapas.
Em suas manifestações oficiais, o governo justifica o controle sobre o ensino sob o argumento de que faltava estrutura aos municípios e afirma que as mudanças fazem parte de uma estratégia para que o setor ganhe eficiência e seja melhor financiado.
'Perda de autonomia também afetou ensino superior e pesquisa'
O novo currículo escolar e os ataques a professores
Um ano depois de mudar os livros didáticos, em 2020, o governo alterou também o currículo escolar. A ideia era torná-lo mais "patriótico".
Miklósi se manifestou publicamente de forma crítica, especialmente em relação à orientação para que os professores de História não falassem sobre as batalhas perdidas pelo país no passado, apenas sobre as vitórias militares.
"Me tornei o inimigo público número um do momento", diz ele, referindo-se aos ataques que passou a sofrer da imprensa favorável ao governo.
"Durante três meses, a cada dois dias saía alguma coisa me criticando, dizendo que eu só queria ensinar aos jovens sobre as batalhas que os húngaros perderam."
Nos 12 anos em que Orbán está no poder, a liberdade de imprensa tem sido gradativamente cerceada no país. Hoje, a grande maioria dos meios de comunicação é direta ou indiretamente alinhada ao governo - mais de 500 fazem parte de uma fundação pública criada no fim de 2018.
Com a exposição no noticiário, Miklósi conta ter recebido uma série de ameaças por e-mail e por telefone.
"Isso tem um peso emocional enorme."
Com medo da repercussão, são muitos os que preferem calar, diz ele, citando o caso de dois professores de História que, depois de criticarem um vídeo financiado pelo governo exaltando um dos feitos militares do passado húngaro, viraram alvo dos ataques dos meios de comunicação.
"Durante dois dias, foram para cima deles, uma campanha de ódio tão intensa que fez com que eles não abrissem mais a boca para dar a opinião profissional sobre nada."
Perda de autonomia das universidades e centro de pesquisa
O cientista político Zsolt Enyedi, professor da Central European University (CEU), foi diretamente afetado pela "cruzada" na educação.
Em 2018, a universidade teve de deixar quase todas as operações em Budapeste, na capital do país, e transferi-las para Viena, capital da vizinha Áustria.
Mais extremo, o caso da CEU foi atípico, explicado pelo fato de a instituição ser financiada pelo bilionário húngaro George Soros, um dos "inimigos" eleitos pelo primeiro-ministro.
Soros é acusado de financiar entidades supostamente interessadas em promover a imigração em massa e destruir o país. A campanha de reeleição de Orbán em 2018 chegou a espalhar outdoors com a foto do filantropo e os dizeres "Não vamos deixar George Soros rir por último".
As mudanças na educação começaram justamente após a última eleição, no terceiro mandato consecutivo do primeiro-ministro.
"Orbán não mexeu na educação nos dois primeiros mandatos. Se limitou a tirar bastante dinheiro do orçamento, direcionado para áreas como o esporte. Era como se ele aceitasse que a educação sempre seria gerida por pessoas com certo nível de autonomia, que talvez pensassem diferente dele", relata Enyedi.
"Mas depois de vencer duas eleições e garantir maioria constitucional no Parlamento, ele decidiu interferir na educação também."
Na educação primária, a administração foi transferida para muitas igrejas, algumas cuja cúpula é próxima do primeiro-ministro.
A educação superior e a pesquisa científica também perderam autonomia. Nos últimos anos, o governo promoveu uma espécie de privatização do ensino superior, com a transferência do controle de universidades públicas para fundações privadas com conselhos compostos por membros indicados pelo governo, muitas vezes ex-ministros ou empresários com ligações com o premiê.
Em julho 2019, milhares foram às ruas de Budapeste para protestar contra uma lei recém-aprovada que permitia ao governo controlar mais de 40 institutos ligados à Academia Húngara de Ciências, como noticiou a revista Nature na época.
Em setembro de 2020, a capital novamente foi tomada por milhares de manifestantes contra a perda de autonomia da Universidade de Teatro e Cinema, na ocasião a sétima que passaria a ser gerida por uma fundação ligada ao governo.
Em abril deste ano a Hungria passa por novas eleições e, pela primeira vez em mais de uma década, Orbán vai enfrentar uma oposição unificada. As pesquisas de opinião refletem a polarização da sociedade húngara, com o rival Peter Marki-Zay bem posicionado.
O professor da CEU chama atenção, contudo, para o fato de que, mesmo que Orbán e seu partido, o Fidesz, saiam derrotados nas urnas, parte das mudanças feitas durante sua administração não são facilmente reversíveis. Muitas delas foram transformadas em lei e incluídas na Constituição, graças à maioria com a qual o primeiro-ministro tem contado no Legislativo.
No caso das universidades, ele exemplifica, os membros do conselho à priori têm cargos vitalícios.
"Agora que tem controle total sobre a sociedade, Orbán acredita que pode construir um arcabouço institucional para arregimentar as novas gerações para sua ideologia - tenta construir algo que dure ainda mais que ele."
BBC Brasil