Mais do que o encontro com Putin, postura e eventuais declarações de Bolsonaro é que são efetivamente perigosas diplomaticamente
Por Ricardo Corrêa (foto)
A viagem do presidente Jair Bolsonaro à Rússia e também à Hungria já estava marcada desde novembro. Cancelá-la, a esta altura, resolveria um problema criando outro. Não seria, portanto, uma solução. Sua realização, por si só, não é o que mais preocupa ou pode causar danos, mas sim a postura que o presidente brasileiro terá nesses encontros. O risco está, efetivamente, na maneira como o nada diplomático representante brasileiro pode conduzir suas falas, sobretudo sob a pressão que certamente receberá do presidente russo Vladimir Putin, um dos poucos líderes mundiais que hoje aceitam se sentar à mesa com ele.
Encontrar-se com os russos no momento em que há o mais alto grau de tensão entre aquele país e o ocidente foi fruto do acaso. Mesmo sabendo que em novembro a possibilidade de um conflito na Ucrânia já começava a surgir no horizonte, só um vidente poderia imaginar que justamente agora, em fevereiro e na semana da viagem, o cenário seria a iminência de uma guerra. Neste caso foi mais azar do que inabilidade do Itamaraty. É razoável absolver Bolsonaro de culpa. Como também é razoável isentá-lo da obrigação de cancelar a viagem. Seria a perda definitiva de um possível aliado e traria a imagem de rendição às ordens de europeus e norte-americanos. Consequência indesejada sobretudo no campo eleitoral para o presidente brasileiro.
A grande questão é como manter a viagem e não meter os pés pelas mãos em meio ao conflito que se avizinha. Se Bolsonaro se ativesse aos debates bilaterais tendo em vista as relações comerciais entre os dois países, ficaria mais fácil evitar que a viagem se transformasse em um problema diplomático ao Brasil. Mas já na pauta e na composição da comitiva vê-se que é ilusão acreditar nisso. A presença do ministro da Defesa, Braga Netto, reforça a certeza de que os representantes brasileiros não abrirão mão de discutir uma cooperação militar, com a compra de equipamentos, o que é delicado para um país que festejou, em 2019, ter sido designado pelos norte-americanos como um aliado extra-Otan. No momento em que, mais do que nunca, russos e Otan buscam ampliar suas esferas de influência e estão à beira de um conflito militar, as negociações podem ter potencial explosivo.
O grande problema nessa conjuntura é o risco de, para alinhavar tal cooperação, os russos exigirem do presidente brasileiro alguma declaração de apoio em meio às ameaças de invasão da Ucrânia. Se isso ocorrer e o presidente, isolado internacionalmente e rancoroso do tratamento que recebe da União Europeia e do novo presidente dos Estados Unidos, topar fazê-lo, as consequências para a imagem do país no cenário mundial serão maiores. Isso sem falar, claro, do flagrante desrespeito aos preceitos de nossa Constituição que impõem a não-intervenção, a defesa da paz e a solução pacífica dos conflitos. Considerando a impulsividade de Bolsonaro, sua dificuldade com as palavras e a pouca preocupação com o que verbaliza, há riscos até mesmo em uma escorregada involuntária em uma entrevista ou live semanal.
Do ponto de vista dos objetivos de Bolsonaro nos encontros, é nítido que há a busca por utilizar as reuniões com Putin e com o líder húngaro Viktor Orbán como um aceno à sua base conservadora. Embora alguns dos aliados tentem comparar os encontros com os que os líderes europeus ou norte-americanos tivessem com o russo, evidentemente que Bolsonaro não está indo lá para tentar mediar a paz. Até porque, se fosse, também se encontraria com o líder ucraniano. O objetivo é apenas mostrar que não está isolado e que pode tratar de pautas comuns com outros conservadores que estão no poder no planeta. Putin, embora inimigo da extrema-direita ucraniana tão exaltada pelo movimento bolsonarista, pensa como Bolsonaro na questão dos costumes, da mesma forma que Viktor Orbán.
Mais preocupações devem trazer os possíveis debates para importar para o país os métodos utilizados pelos líderes russo e húngaro para se perpetuarem no poder, sufocando a oposição e impondo sua ideologia. Não é segredo para ninguém que, se pudesse, Bolsonaro faria aqui no Brasil o que Orbán fez na Hungria, com interferência direta no Judiciário e alterações nas regras eleitorais de modo a se tornar invencível. Fraco politicamente e sem apoio popular ele não consegue fazer o que o colega húngaro fez com sucesso até hoje. O encontro acontece justo agora que o império de poder construído por Orbán corre um risco real nas eleições de abril, que marca a união plena de toda a oposição do país contra o atual líder. Bolsonaro pode, então, ter a última chance de uma foto com um aliado europeu antes das eleições. A consequência, porém, é óbvia: a derrota de Orbán, como a de Netanyahu ou Trump, também estarão coladas em Bolsonaro em pleno debate eleitoral brasileiro. Ele sabe disso, mas não tem escolha. Ou se encontra com Putin e Orbán, ou não se encontra com ninguém.
O Tempo