Estou entre os russófonos que dispensa qualquer tipo de apoio do autocrata russo e espero que ele nunca me venha ajudar, porque não quero que tal ajuda venha acompanhada de sangue, destruição, ódio...
Por José Milhazes
Quis o destino ou Deus… Não, quis o Partido Comunista Português (com o meu total acordo e sem qualquer pressão) que eu fosse, no longínquo ano de 1977, partisse para a União Soviética para viver e estudar. Para que tal fosse possível, tive de aprender a língua russa e transformei-me num russófono. Como dizem os dicionários, russófono é aquele ou aquela que fala russo.
Até aqui tudo bem, mas as coisas começaram a complicar-se quando o ditador Vladimir Putin autoproclamou-se defensor dos russófonos estejam eles onde estiverem. Como é sabido, todos os cidadãos da União Soviética eram obrigados a estudar russo, ou seja, eram todos russófonos e, por isso, o autocrata do Kremlin chamou a si um trabalho hercúleo de proteger e defender milhões de pessoas, repetindo os feitos “heróicos” dos czares russos e dos dirigentes comunistas soviéticos.
Os czares consideravam ter por missão defender os “irmãos ortodoxos”, o que implicaria controlar, além do império que já tinham, os Balcãs e, se possível, Constantinopla. Como sabemos, a história acabou muito mal para os czares, que arrastaram consigo milhões de pessoas para o abismo comunista.
Os dirigentes soviéticos tinham projectos ainda maiores, ao nível planetário, intervinham em qualquer lugar onde um ditardorzeco anunciava ter decidido enveredar pela “via do socialismo”, fosse na Cuba de Castro, na Angola de Agostinho Neto, no Moçambique de Samora Machel, etc., etc. Também sabemos qual foi o resultado inglório dessas aventuras.
Não há estatísticas que mostrem quantos russófonos existem nos países que faziam parte da União Soviética (embora o seu número tenha diminuído significativamente depois de 1991) e no mundo, nem se sabe quantos deles querem a ajuda de Putin. Duvido imenso que a maioria dos habitantes dessas antigas repúblicas soviéticas querem receber essa ajuda, mas o ditador teima em querer ajudar e só é “impedido” de o fazer pelos ingratos ucranianos, estónios, lituanos, letões, etc., e também, claro está, pela NATO, União Europeia, Estados Unidos, CIA, etc.
Eu estou entre os russófonos que dispensa qualquer tipo de apoio do autocrata russo e espero que ele nunca me venha ajudar, porque não quero que essa ajuda venha acompanhada de sangue, destruição, ódio… O triste e cruel espectáculo montado pelo Kremlin no leste da Ucrânia mostra até onde pode ir a paixão de Putin em relação aos ucranianos.
E Putin já nem sequer esconde as evidentes trafulhices que faz para justificar o ataque contra um país a que ele chama “irmão”. A relação entre ele e a Ucrânia é claramente “incestuosa”. Inventa “invasões ucranianas” para violar a integridade territorial de um país vizinho, espezinhando os mais elementares princípios do Direito Internaconal.
Já escrevi várias vezes, mas voltou a repetir: Putin foi um dos dirigentes que mais contribuiu e contribui para que todos os vizinhos, à excepção, talvez, da China e da Coreia do Norte, olhem com uma enorme mistura de medo e ódio para a Rússia.
Perante esta política imperialista, reacionária e expansionista, o “Partido da Carrinha” (PCP) continua a querer fazer crer que Putin é um dirigente progressista. O anti-americanismo dos comunistas portugueses é cego ao ponto de considerarem que o ditador russo é de esquerda, anti-imperialista, progressista, etc. Nem sequer notaram que comparada com a ideologia de Moscovo, a do “Chega” pode ser situada no centro-esquerda.
Basta ler umas linhas do “Avante” para compreender a cegueira do “Partido da Carrinha”, que, por este andar, vai ter o destino do “Partido do Táxi”: “A obscena campanha provocatória do imperialismo contra a Federação Russa intensificou-se continuamente…”
Será que estas posições são ditadas não só e não tanto por cegueira ideológica daquilo a que se chama os “idiotas úteis” de Putin? Na era soviética, Moscovo pagava bem pela propaganda e pela fidelidade…
Acho também estranho que generais portugueses na reserva, que realizaram importantes missões para a NATO em várias regiões do mundo, venham agora justificar a política externa do ditador russo e acusar os “extremistas” ou “neonazis ucranianos” de provocarem esta crise.
Não, esta crise tem uma origem e reside no facto de a Rússia querer chamar a si o direito de mandar na política interna e externa dos países vizinhos. A Ucrânia é um país soberano e reconhecido pela comunidade internacional e não são os malabarismos históricos e as provocações de Putin que irão mudar isso.
A vontade do povo ucraniano está no seu hino nacional, que tentarei, não sendo poeta, traduzir da melhor forma que posso:
Ainda não morreu a Ucrânia,
A glória, a vontade,
A nós, irmãos,
O destino sorri!
Os nossos inimigos perecerão
Como o orvalho ao sol
Nós também governaremos, irmãos,
O nosso país.
Por isso, como russófono e russófilo, revolta-me ver uma Rússia governada por gangsters.
Observador (PT)