Por Merval Pereira (foto)
Neste ano de campanha eleitoral acirrada, o conceito de liberdade de expressão será testado com frequência. As discussões em andamento sobre Telegram, fake news e outros fenômenos da pós-verdade mostram que esse assunto dominará o ambiente social brasileiro. Fake news, aliás, não deve ser traduzido por notícia falsa, na verdade é notícia fraudulenta, com potencial danoso muito maior. É a arquitetura da internet que deve ser regulada, com vista à transparência e à lisura, o que tenta fazer o projeto de lei das “Fake News” que está parado na Câmara.
O pano de fundo para o debate tem de ser o consenso do mundo ocidental sobre o escopo dessa liberdade, ao mesmo tempo um direito individual e uma garantia coletiva da sociedade, porque, de seus desdobramentos — como as liberdades informativas e a liberdade de imprensa —, depende aquilo que o jurista americano Oliver Wendell Holmes chamou de “marketplace of ideas”, o mercado de circulação livre de informações e ideias, um dos pilares das democracias liberais.
Essa última função tem como limite o que o filósofo austríaco Karl Popper definiu como o “paradoxo da tolerância” (em “A Sociedade aberta e seus inimigos”). A tolerância ilimitada com a intolerância pode, no limite, levar à extinção da própria tolerância. Como garantir que um governo eleito democraticamente não tome medidas que aniquilem a própria democracia e impeçam alguma minoria de se tornar maioria? No Brasil dos últimos anos, sabemos bem como é difícil conter essas ondas negacionistas das milícias digitais a serviço do governo.
Na regulação da liberdade de expressão, o Brasil está mais próximo do modelo europeu do que do americano. A visão americana é mais libertária, toleram-se as manifestações intolerantes até o momento em que representem ameaça concreta à vida ou à ordem pública. Mas nem nos Estados Unidos a liberdade é absoluta. Há uma gradação entre o discurso de ódio (“hate speech”, ou a advocacia de ideias abjetas), a incitação (“fighting words”, o discurso de rebelião ou insuflação à violência) e o “perigo claro e iminente” (o uso das palavras como gatilho para a violência).
Apenas nesse último caso, quando há um ataque a pessoas ou alvos determinados, com risco iminente, ou quando houver uma rebelião que resulte em destruição da vida ou patrimônio, o discurso pode ser cerceado. Na Europa, em contraste, a compreensão da liberdade de expressão é bem mais restritiva. Na vasta maioria dos países europeus, “hate speech” e “fighting words” também são proibidos.
A exceção é o Reino Unido, onde “hate speech” é aceito, mas “fighting words” não são toleradas. Em muitos países existe, como no Brasil, legislação que criminaliza tipos específicos de discurso, como o racismo, o antissemitismo ou a homofobia, vedando essas manifestações, cuja simples existência é considerada um risco. Nesse ponto, a sociedade brasileira demonstrou maturidade ao reagir com veemência à manifestação do podcaster Monark em favor de nazistas se organizarem em partidos e manifestarem suas ideias.
Não temos — nem teremos — liberdade absoluta, mas se estabeleceu a precedência da liberdade de expressão sobre outros direitos e princípios constitucionais. As redes sociais trouxeram novos desafios para fazer valer direitos individuais ou coletivos. São um foro público de debate sobre o qual o estado deve ter algum tipo de ingerência. O caso do Telegram é exemplar: não pode atuar no país se não se submeter às nossas leis. Emissoras e jornais estão sujeitos a todo o arcabouço regulatório, na internet não pode ser diferente. Os algoritmos são criados para favorecer conteúdos mais atraentes, portanto impõem crivo editorial. Nesse ponto, o Marco Civil da Internet adota uma postura pusilânime, segundo muitos especialistas, pois as plataformas só têm responsabilidade a partir do momento em que há decisão judicial mandando retirar o conteúdo ofensivo.
O sistema mais avançado é o da União Europeia, e o país na vanguarda é Alemanha. O princípio correto é conhecido como “notice and take down”: a partir do momento em que uma rede social recebe notificação de que veiculou conteúdo que gerou problema, deveria passar a ser corresponsável.
O Globo