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segunda-feira, fevereiro 21, 2022

Em carne viva




Por Dorrit Harazim (foto)

A visionária cientista e ambientalista Rachel Carson, autora do clássico “Primavera silenciosa”, alertara o mundo já nos idos de 1960: “O ‘controle da natureza’ é uma frase concebida na arrogância, nascida da era Neandertal da biologia e da filosofia, quando se supunha que a natureza existe para a conveniência humana”. Bingo. No Brasil de 2022, como ao longo de seus 200 anos desde a Independência, a natureza continua a ser tratada como commodity a serviço de suas sucessivas elites. Em nome de uma prosperidade seletiva, gananciosa, ela, a natureza, nunca conseguiu ter lugar à mesa — nem mesmo diante da revolta climática em franca rebentação sobre o planeta.

As cenas de horror vividas nesta semana por moradores de Petrópolis, na Região Serrana do Rio de Janeiro, vieram consolidar algo semelhante a um trauma nacional por abandono à própria sorte. O sentimento é de um país à deriva em mãos delinquentes — tanto no governo como no Congresso —, esquecido num faroeste institucional sem precedentes. A dimensão da tragédia mais recente foi resumida com precisão por Flávia Oliveira neste mesmo espaço, dois dias atrás, cuja coluna se recomenda aqui. Começava assim: “Estão soterrados o Estado (brasileiro) e o estado (Rio de Janeiro) incapazes de, 48 horas depois de uma tragédia com centena de mortos, assistir as áreas devastadas. Afundou na lama a gestão pública que não apenas desrespeita a vida, como também despreza a morte. Execrável é a palavra que define o papel das autoridades na catástrofe de Petrópolis. Onze anos depois de a mesma região sofrer o maior desastre natural da História do país, em que mil pessoas desapareceram, homens e mulheres, pais e mães, familiares e vizinhos, com as próprias mãos, escavam escombros para resgatar corpos de vítimas”.

Como não ficar em carne viva com o tom institucional das “mensagens de apoio” de autoridades, coalhadas de gerúndios e do advérbio “já” para sugerir ações em andamento, quando falta tudo? Nem sequer as verbas existentes para a prevenção de calamidades climáticas foram usadas por inteiro nas duas últimas décadas. O tom deliberadamente descompromissado da postagem solidária emitida pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, teve ar de paisagem. Dono e patrono do pérfido “orçamento secreto”, que abriu as burras federais para acomodar as tantas demandas político-particulares na Casa, Lira jamais cogitaria destinar uma só piastra dos R$ 16,5 bilhões abocanhados para contemplar um Brasil náufrago.

Sem falar na mensagem de pesar assinada por “Dom Orléans e Bragança, Príncipe Imperial do Brasil”, que levou um dia inteiro para ser emitida! A lama já havia engolido mais de cem vidas e destruído a cidade que alimenta sua dinastia. “A Família Imperial, tão estreitamente ligada a Petrópolis, encontra-se sempre disposta a servir seu povo, oferecendo ainda nossas orações e solidariedade...”, diz um trecho da nota, estendendo gratidão aos integrantes dos primeiros socorros e “beneméritos particulares —dentre os quais há muitos monarquistas”. Enquanto milhares de brasileiros anônimos acorriam ao local para mergulhar na terra encharcada em busca de desaparecidos, o site Metrópoles apurou que o mesmo “Dom Bertrand” encontrara tempo e disposição para participar de uma gravação num canal humorístico conservador —se é que humor e conservadorismo ainda podem coexistir no Brasil de hoje.

Tampouco o autointitulado “príncipe” Luiz Philippe de Orléans e Bragança, que exerce o cargo republicano de deputado federal pelo PSL de São Paulo, foi visto chafurdando entre destroços. Tetraneto do imperador Dom Pedro II, o parlamentar adquirira nova notoriedade em 2021 ao omitir do Tribunal Superior Eleitoral mais de R$ 7 milhões que depositara numa offshore nas Ilhas Virgens.

Não seria este o momento apropriado para uma Família Real efetivamente nobre abrir mão de um laudêmio criado por Dom Pedro II em 1847, exclusivamente para benefício próprio? Popularmente conhecido como “taxa do príncipe”, o tributo incide sobre vendas de imóvel em terreno petropolitano que algum dia pertenceu à antiga Família Imperial. São 2,5% de toda transação imobiliária desse imenso latifúndio, com pagamento à vista, direto para uma empresa administrada por dez herdeiros da linhagem dos Orléans e Bragança. Coisas do Brasil.

Quase todo ser humano pode ser ensinado a pensar, a acreditar, a adquirir conhecimento. Mas ninguém pode ser ensinado a sentir. O povo brasileiro jamais conseguirá ensinar o que é humanidade e seu corolário de interesse pelo próximo, a governantes e lideranças desprovidos desse privilégio. Mas, como diz a sempre incandescente Rita Lee, “o que a gente mais quer no mundo nesse momento? Mudar! Mudar para melhor, para mais consciência, mais luz”.

O Globo

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