A narrativa identitária que restringe aos brancos ocidentais a culpa pela escravidão de negros merece ser chamada de negacionista, já que esse termo foi criado no pós-guerra para se referir ao genocídio de um outro povo, o judeu.
Por Bruna Frascolla (foto)
Quando a politização está em alta, há um jeito fácil de distinguir entre o homem de fibra e o covarde: basta perguntar qual é o preço que o homem paga pelo seu posicionamento. Um professor de federal concursado, que fica diante do computador repetindo slogans identitários em rede social, paga alguma coisa por isso? Nada; muito pelo contrário. Ele joga para a torcida. Sabe muito bem que o governo federal nada pode contra os seus vencimentos. Quem pode, na verdade, são os coletivos identitários.
Como opera um coletivo? Mira professores insubmissos ao dogma. O professor pode até ser de esquerda, pode até concordar com muitas coisas do identitarismo – mas se suas ideias pisarem num único calo, ele estará na mira. Uma vez na mira, um ato em particular pode desencadear a ação dos coletivos. Eles criam abaixo-assinados difamando o professor, acusando-o de ter cometido os crimes que são imputados coletivamente a homens, brancos heterossexuais, caso ele seja essas três coisas ao mesmo tempo. Tais crimes são assédio sexual, racismo e homofobia (que o STF decidiu ser crime). Como Gabriel Giannatasio, da UEL, é as três coisas ao mesmo tempo, teve de se defender desse tipo de ação coordenada. Saiu-se bem, esse historiador de direita que trabalha em Londrina. Do outro lado do país, em Salvador, um professor negro, racialista, com histórico em movimentos de esquerda, porém antipetista militante, passou por situação idêntica, excetuando-se a acusação de racismo. Trata-se de Fernando Conceição, professor de Comunicação da UFBA. Também se saiu bem e conseguiu manter o emprego.
Tipicamente, ao menos antes da eleição de Bolsonaro, os coletivos contariam com todo o apoio institucional. O departamento, a direção da faculdade e a reitoria facilitariam a vida dos coletivos e dificultariam a vida do professor. Para se ter uma ideia do dia-a-dia de um acadêmico não alinhado, peço que o leitor pense na relação da OAB de Felipe Santa Cruz com os advogados antipetistas que você conhece. Agora imagine que esses advogados têm que olhar todo dia para a cara de Felipe Santa Cruz e seus aliados. É fácil uma corrente política minoritária capturar órgãos por meio de eleições. No caso das federais, esses órgãos afetam muito mais as vidas dos acadêmicos do que a OAB a dos advogados.
No frigir dos ovos, essa ingerência acaba causando o aumento de adesões à corrente minoritária. Acaba sendo um ímã de covardes. Misturando-se à turba persecutória, os covardes sabem que não estarão do lado dos perseguidos.
O mais novo alvo
Para o professor Rafael Ruiz, o momento estourou. Ele é professor de História das América da Universidade Federal de São Paulo (Unifeso) e às vezes escreve artigos para este jornal. Espanhol de nascimento, com muitas décadas de Brasil, sua área de estudo o obriga a conhecer a história dos impérios maia e asteca, bem como as atividades dos guaranis que zanzavam entre o Paraguai e São Paulo. Olhando seu currículo, podemos ver que a preocupação com os direitos dos índios esteve presente na trajetória acadêmica deste espanhol que escolheu o Brasil para viver.
Rafael Ruiz não é engajado em política partidária; prefere tratar de literatura ou, no máximo, do problema político que via diante dos olhos na Unifesp: a intolerância à diferença.
Vendo circular a carta aberta em defesa de Antonio Risério, que é justamente em favor de uma causa que o mobiliza, ele poderia ficar quieto para evitar problemas. No entanto, agiu como esperaríamos do autor destas palavras: “o que mais surpreende é o silêncio (cúmplice?) […] de tantas e tantas instituições livres e democráticas que sempre antes levantaram a sua voz para defender a liberdade de expressão, de opinião e de pensamento […] e agora permanecem calados, como se se tratasse do filme O silêncio dos inocentes. Que aconteceu com todos eles? Não têm receio de que a censura se instaure de novo no País?”. Ele não ficou em silêncio e assinou a carta. E chegou a hora de pagar o preço.
Intimidação sem razão
O Centro Acadêmico de História da Unifesp redigiu uma carta aberta de repúdio contra o professor. Pode ser lida na íntegra aqui. Nela, o “Centro Acadêmico de História da Unifesp repudia veementemente o conteúdo racista desta carta [em defesa de Risério] e convoca toda a comunidade discente, entidades estudantis e, principalmente, o Departamento de História da UNIFESP, a se posicionar contra os documentos já citados, condenando de maneira enfática o apoio de um professor de nosso departamento aos argumentos expostos em ambas as publicações [o artigo de Risério e a carta], que são, no mínimo, conspiracionistas e nutrem desonestamente movimentos racistas, revisionistas e mentirosos, afinal, como sabemos, racismo reverso não existe”. Como de costume, ninguém atenta aos casos trazidos por Risério; em vez disso, repete o dogma segundo o qual “racismo reverso não existe”. (Razzo já tratou do assunto e eu não tenho nada a acrescentar agora.)
No mais, chamam de racista a carta feita por Eli Vieira e por mim, e assinada por mais de 800 pessoas. Isso é difamação. É caso de processo, e depende de nossa boa vontade não processar. Vocês podem ler a nossa carta aqui. Ela não tem nada de racista e está fundada no consenso do pós-guerra em torno dos direitos humanos. Para que não restem dúvidas quanto ao caráter difamatório, consta que “é essencial todo o apoio às organizações que combatem diariamente atitudes e discursos criminosos, veiculados, inclusive, na carta de apoio a Antônio Risério”. É possível ter boa vontade caso os anônimos e os dois alunos retirem o que disseram e peçam desculpas ao Prof. Rafael Ruiz.
Para piorar, a carta não revela um nível de conhecimento histórico aceitável para alunos de História do nível superior. Faz parecer que a instituição da escravidão é uma invenção racista (de brancos contra negros) e capitalista, quando não é. A escravidão existiu em todos os continentes, praticada por gente de todas as cores contra gente da mesma cor. A escravidão é infinitamente mais velha do que o capitalismo: é provável que seja tão velha quanto a humanidade.
É de se esperar que historiadores acadêmicos não sejam negacionistas daquilo que o historiador Tidiane N’Diyae chamou de “genocídio ocultado” no título de sua famosa obra, que versa sobre o tráfico árabo-muçulmano de escravos negros pagãos, que eram castrados antes de serem exportados. A narrativa identitária que restringe aos brancos ocidentais a culpa pela escravidão de negros merece ser chamada de negacionista, já que esse termo foi criado no pós-guerra para se referir ao genocídio de um outro povo, o judeu.
A reação do departamento
Resta saber se o Departamento de História irá, por tibieza, passar o recibo de baixeza intelectual e moral. Como não há aulas presenciais, não vão conseguir inventar acusação de assédio sexual contra os professores. Se o departamento baixar a cabeça, é certo que esses anônimos difíceis de dimensionar (notem que uma porção de entidades assina, e apenas duas pessoas com nome próprio o fazem) aparecerão com mais notinhas contra quem quer que viole o dogma da vez. (E sempre aparecem novos dogmas – ano retrasado você era obrigado a dizer que homem fica grávido? Se der a mão, pedem o braço. Não deixam em paz.)
Se o departamento não baixar a cabeça, o que é que esses anônimos covardes irão fazer? Demitir o departamento inteiro? Isso não tem nenhum precedente, nem mesmo na época do PT.
Mas a pergunta fundamental talvez seja: se o professor baixar a cabeça, conseguirá ainda sentir respeito por si próprio?
Gazeta do Povo (PR)