Eurípedes Alcântara
O Globo
Michael Shellenberger, como escreveu Walt Whitman, “contém multidões”. Foi sandinista na Nicarágua, militante do MST no Brasil, ambientalista radical. Aos 50 anos, renega o passado de ativista e se dedica a pensar. Para alguns de seus amigos, virou um chato. Mas daqueles que não adianta ignorar.
No ano passado, publicou “Apocalypse Never: Why Environmental Alarmism Hurts Us All” (“Apocalipse nunca: por que o alarmismo ambiental faz mal a todos nós”), um livro que vai contra a corrente, muito bem pesquisado, mas prejudicado pela maneira arrogante com que seu autor lhe deu publicidade.
CAOS EM SÃO FRANCISCO – Shellenberger atacou novamente. Agora com “San Fransicko — Why Progressives Ruin Cities”. Fransicko mistura o nome da cidade da Costa Oeste dos Estados Unidos com a palavra doente em inglês, sick. É uma grande reportagem sobre como, na visão dele, os progressistas “destruíram” San Francisco por uma sequência histórica de ações de caridade levadas a cabo por políticos imprudentes, eleitos por “baby boomers nostálgicos da era hippie”.
Atire a primeira pedra quem tem mais de 50 anos e não se emociona quando ouve “If you’re going to San Francisco / Make sure to wear some flowers in your hair”, o hino geracional de Scott McKenzie.
Não há mais hippies com girassóis nos cabelos em San Francisco. Imensas áreas urbanas tornaram-se concentradoras de miseráveis vindos de todas as partes dos Estados Unidos, situação que precede a pandemia de Covid-19, mas foi agravada por ela.
PROPOSTAS POSITIVAS – “San Fransicko” não é um livro de coração duro. É um livro contra a leniência oportunista de políticos de cabeça mole. “O objetivo não é apenas criticar. Trago propostas positivas e testadas, que são capazes de restaurar não apenas a lei e a ordem da cidade, mas a dignidade humana de seus moradores mais pobres”, escreveu Shellenberger.
O ponto central é a constatação da falência das atuais políticas sociais, que só fizeram multiplicar o número de desabrigados nas ruas da cidade.
“Apenas um quinto dos moradores de rua de San Francisco é daqui. A imensa maioria é formada por pessoas de outras regiões que acham mais confortável ser ‘homeless’ aqui do que viver em suas casas, mesmo precárias, em suas cidades de origem”, escreveu o autor.
CRÍTICO DO SISTEMA – Ele foi guiado em parte das pesquisas para o livro por Tom Wolf, um ex-morador de rua de San Francisco que se transformou num crítico feroz do sistema. Diz Tom Wolf:
“Políticos, líderes comunitários e ricos esnobes inocentes uniram-se a traficantes de drogas para lucrar com o vício e a miséria da multidão crescente de miseráveis nas ruas de San Francisco. Não é do interesse de nenhum desses ‘caridosos’ interromper o ciclo de multiplicação dos sem-teto”.
A combatente advogada de direitos humanos Jennifer Hernandez já apontara a existência de uma “indústria da miséria” nas convulsionadas cidades da Califórnia. Ela elogiou “San Fransicko” por “ter desmontado as atuais políticas com dados revisados por pesquisadores independentes”. Hernandez diz que a maioria dos desabrigados da Califórnia é dependente de álcool, drogas injetáveis pesadas, sofre de doenças mentais complexas e “não pode ser ajudada apenas por uma barraca de plástico, esmolas em dinheiro ou algumas noites em abrigos da prefeitura”.
CRACOLÂNDIAS – Por propor soluções viáveis, Shellenberger saiu-se melhor que outros autores de obras críticas de políticas de ajuda ineficazes como Graham Hancock (“Os lordes da pobreza”, de 1989) e Michael Matheson Miller (diretor de “Poverty, Inc.”, documentário de 2014).
O ponto comum das propostas que o livro de Shellenberger traz é evitar a concentração de pessoas carentes em áreas impenetráveis, como as cracolândias das cidades brasileiras, caso mais notório de São Paulo. A cracolândia de San Francisco responde pelo nome de Tenderloin, região boêmia histórica hoje inteiramente degradada.