Por Maria Cristina Fernandes (foto)
Em “Código de Machado de Assis” Miguel Matos varre a obra do escritor à cata de suas migalhas jurídicas e compila as idiossincrasias da justiça e do mundo forense sob a lente irônica do bruxo do Cosme Velho
Com as “quatro linhas da Constituição”, o presidente Jair Bolsonaro tirou o “cabo e o soldado” da legalidade para entrar no direito. É estapafúrdio, mas não passa de um plágio.
Corria o ano de 1893 e Machado de Assis, a propósito de comentar uma efeméride, os 70 anos do golpe de Estado de Pedro I, o compara, em crônica para a “Gazeta de Notícias” do Rio, àquele de Luiz Napoleão Bonaparte. A frase de Napoleão - “saí da legalidade para entrar no direito” - marcou Machado desde um tempo em que ele não sabia o que era direito nem legalidade.
E para quem está perdido no direito, na legalidade e na história, Miguel Matos recupera a crônica em “Código de Machado de Assis” (Editora Migalhas, 2021). Ainda acrescenta o breve relato da invasão do plenário da Câmara dos Deputados, em 12 de novembro de 1823, a mando de D. Pedro I, quando foram presos e exilados vários parlamentares.
A invasão interrompeu os trabalhos constituintes que, a partir daí, foram conduzidos por dez luminares de sua algibeira que redigiram a primeira Constituição do Brasil, em 1824.
Ao longo de 590 páginas, Miguel Matos garimpa toda a obra de Machado de Assis - romances, poesia, dramaturgia, crônicas, críticas literárias e contos - para recuperar os personagens do direito, de advogados a ministros, passando por desembargadores, juízes, bacharéis, promotores, tabeliães e escrivães.
Por meio deles, Machado descrê e zomba das pompas e idiossincrasias da Justiça e do mundo forense. A análise do direito na obra de Machado de Assis, como lembra o autor na exposição de motivos, já foi esgotada por Raymundo Faoro em “A Pirâmide e o Trapézio”.
Os personagens, saídos das primeiras escolas de direito do país, no Recife e em São Paulo, são filhos de proprietários de terra, para quem o diploma é um troféu do ócio ou, na grande maioria, são bacharéis pobres. Estes percebem que o foro não lhes bastaria. Mas dele se valiam em buscar um casamento rico ou padrinho político para prebenda vitalícia.
O que Miguel Matos oferece é uma compilação cuidadosa desses personagens e histórias com promessa de código QR com reproduções das crônicas nos jornais em que foram publicadas. Promessa porque o da primeira edição não funcionou bem, mas há melhorias no forno para a segunda. A prosa despretensiosa bebe na ironia do escritor e a traz para tempo presente.
A boa escrita teve no “Migalhas”, site jurídico fundado pelo autor há duas décadas, seu treino. Advogado tardio, Matos foi caixa de banco e administrador de uma fazenda no interior de São Paulo antes de fundar o Migalhas, que começou como um empreendimento solitário.
Ele lia as notícias de madrugada, fazia breves comentários e os despachava para amigos. A lista cresceu e hoje o informativo é despachado diariamente por e-mail e pelo WhatsApp para 760 mil pessoas.
A diagramação é quase tão enfadonha quanto a das gazetas nas quais Machado publicava suas crônicas no século XIX. A graça está no que lá se escreve. As manchetes não se pautam pelos algoritmos que hoje ditam o conteúdo jornalístico nas redes. Não se encontra lá só o que o leitor quer ler, mas o que ele deve ler. Tem até coluna de gramática.
Na abertura do site sempre há um aforismo. Há um ano e meio, como Miguel Matos estivesse trabalhando no livro, estes têm sido da lavra de Machado. Mas já foram de Eça de Queiroz, Lima Barreto, Euclides da Cunha, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa e outra dúzia de autores cujas frases foram compiladas em livrinhos. Todos com obras já de domínio público, à exceção de Luis Roberto Barroso e Paulo Bomfim. Como faltam mulheres na lista, a edição da poeta portuguesa Florbela Espanca já está planejada como um habeas corpus preventivo.
Com os livrinhos, Matos encontrou uma maneira de fazer a equipe de 50 jornalistas ler, gerou renda para o site e cultivou as migalhas da pedagogia. É como se o site e, agora, o “Código” estivessem a lembrar, a uma das maiores comunidades jurídicas do mundo (são 190 habitantes por advogado, enquanto nos Estados Unidos a proporção é de 244 por um) que Machado está ali à espreita para continuar a fazer troça.
Seu leitor tanto tem a opção de escapar dela, mergulhando nos livros, quanto de se tornar um personagem machadiano, como os Janjão, pai e filho, do conto “Teoria do Medalhão”. O pai diz ao filho que o melhor ofício que pode almejar é o de “medalhão”, ou seja, parecer ilustre. Para isso, recomenda cultura de bolso para seu verniz cultural. O conhecimento aprofundado não valeria a pena porque o mal subsiste mesmo às boas leis. Vem daí a conclusão que celebrizou o conto: “Antes das leis, reformemos os costumes”.
Quantos advogados não vestiriam a carapuça de Valentim Barbosa, do conto “Astúcias de Marido”, também lembrado no prefácio do ministro Luis Roberto Barroso. “Valentim não tinha convicções políticas. Seguia a regra de não se opor às paixões, nem contrariar opiniões. Era liberal com quem o fosse, e conservador se assim preferisse o interlocutor”, resume Miguel Matos.
Neto de um negro forro, filho de um mestre de obras e de uma lavadeira, portuguesa dos Açores, Machado de Assis nunca pôde cursar uma faculdade de direito. Teve, porém, numa madrinha e numa madastra, abrigo para se tornar autodidata e galgar posições no funcionalismo público, onde chegou a diretor-geral do Ministério da Viação.
A origem social, a gagueira e a epilepsia não o impediram de circular na nata intelectual do país. Amigo de Rui Barbosa e de Joaquim Nabuco, foi fundador da Academia Brasileira de Letras, mas nunca deixou de ver aquele mundo da calçada.
Num país em que o bacharelismo continua a fazer do direito e do “juridiquês” um instrumento de poder e alienação, a visão de Machado de Assis não poderia ser mais atual. Um ministro do Supremo Tribunal Federal, desgostoso com a abordagem que um dia uma jornalista fez de um voto seu, tascou, na lata: “Jornalistas sem formação jurídica não deveriam ser autorizados a escrever sobre o Supremo”.
Machado lhe teria dito que enquanto houvesse ministros capazes de seduzir a própria lei ele lá permaneceria, mas a jornalista, desprovida de semelhante talento, limitou-se a dizer que a Corte não era relevante apenas para os juristas mas para o país.
Do sarcasmo de Machado com o pedantismo bacharelesco, Miguel Matos pinça ainda o conto "Uma por Outra". Nele um pai convence seu filho a mudar de carreira: “A advocacia e a magistratura eram bonitas carreiras, não contando que a Câmara dos Deputados e o Senado estavam cheios de juristas”. Bem como, “todos os presidentes de província”. Por isso, na comparação com a engenharia do filho, o direito “era muito mais certo, brilhante e lucrativo”.
De “O Cruzeiro”, Matos recupera crônica em que Machado ironiza a possibilidade de vir a ser oferecido jantar aos jurados. Já sabia que não há almoço - nem jantar - grátis. Primeiro compara o evento que aconteceria nos tribunais com aquele que se dá na política: “Não há incompatibilidade entre o voto e o prato de lentilhas”.
Depois passa ao júri. Como na absolvição dos réus a municipalidade paga as custas do processo, vaticina: “A primeira e inevitável consequência do jantar aos jurados seria a condenação de todos os réus, não porque o quilo implique severidade, mas porque induz à gratidão”.
E, finalmente, advoga as vantagens do jejum: “A satisfação da carne torce a condição humana, igualando-a à das bestas; ao passo que a privação amortece a condição bestial e apura a outra”.
Matos também pinça nas crônicas o vezo do bacharelismo em enaltecer usos e costumes estrangeiros em detrimento dos nacionais. Da “Gazeta de Notícias”, o livro recolhe uma crônica em que Machado, depois de fazer alusão a uma contenda acirrada entre dois parlamentares, atalha: “Muito melhor fazer brigar os galos do que brigarem as próprias pessoas umas com as outras, escorrendo sangue das ventas humanas, sem divertimento para ninguém”. E conclui: “Enquanto não chegam outros usos da Inglaterra, vamos fazendo uso do galo e suas campanhas. Antes o galo que nada”.
Matos vai buscar no uso dos “embargos de terceiro” em “A mão e a Luva", para se referir à entrada de um terceiro num casal, o que ele considera ser a chave jurídica para o veredito de culpada para a Capitu de “Dom Casmurro”, uma das grandes pendengas literárias da história.
Mais relevante que o veredito é a anotação, em nota de pé de página, dando conta que apenas na mudança do Código Penal de 2005 foi suprimido o artigo que tipificava o crime do adultério. Ou a referência, também marginal, de que a tese da legítima defesa da honra só foi considerada inconstitucional pelo Supremo em 2021.
Como Miguel Matos pouco se importa com os cânones do jornalismo, deixou o lead para o fim. Ele encerra o livro com um conto de sua própria lavra, denominado “Um Ponto”. A história é ambientada numa redação. O diretor do matutino resolvera comprar uma nova rotativa. E eis que surge um embate sobre o foro de resolução das pendengas no negócio.
A solução, vinda de fonte anônima, apareceu num parecer deixado na sala de reunião. De tão fundamentado e fluente até sobre direito internacional, não se sabia a quem seria possível atribuí-lo. Um faxineiro disse que Joaquim, um dos redatores, havia virado noites no setor de brochuras jurídicas da biblioteca. A humildade do redator retirava a credibilidade da versão, mas o diretor mandou buscar Joaquim em casa. E eis que o emissário descobre, atrás de uma porta, o diploma emoldurado de bacharel.
Para o bem da literatura, Miguel Matos só entregou o canudo a Joaquim Maria Machado de Assis 113 anos depois de sua morte.
Valor Econômico