Bernardo MelloO Globo
O ex-delegado da Polícia Federal (PF) Jorge Pontes, de 59 anos, afirma que o processo de investigar a criminalidade entranhada nos governos está longe do fim. Pontes, atual diretor de Ensino e Estatística da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), é autor do livro “Crime.gov”, lançado neste mês, no Rio, e escrito em parceria com o também delegado da PF Márcio Anselmo, que presidiu o inquérito inicial da Lava-Jato em Curitiba.
O livro retrata um “crime institucionalizado”, distinto das organizações criminosas clássicas. O que o define?Estamos falando de um modelo organizacional criminoso que utiliza prateleiras oficiais do Estado. Isso é muito maior do que simplesmente corrupção. Outro dia corrigi uma pessoa que chamou um desses investigados de “marginal”. O sujeito está com a caneta, tem salário pago por nós, carro oficial, gabinete, tudo pago com nosso salário, e usa isso para ganhar dinheiro por fora. Ele está à margem de quê? Esse cara está dentro. Ele não é “marginal”, ele é “nuclear”.
É possível apontar um ponto de partida para isso?Não concordo em dizer que foi criado pelo PT, que começou no governo X ou Y. O que apontamos no livro é o seguinte: ‘olha, existe um monstro aí’. Talvez o governo PT tenha atingido o ápice, como organização que controlou e planejou melhor, tendo a Casa Civil como espécie de holding.
Qual é o paradigma para investigar esse crime institucionalizado?Passamos de siga o dinheiro para siga a caneta. A Lava-Jato mostrou isso. Começou pegando doleiro, operador financeiro. Depois chegou a gestor da Petrobras, ao senador que o indicou. No fim, acabou chegando ao presidente e ao ministro da Casa Civil, que é quem leva a caneta para o presidente assinar.
O livro se refere o crime institucionalizado como uma baleia sob a superfície. Em que momento a baleia se tornou mais visível?A Lava-Jato trouxe a baleia inteira para a superfície. E mostrou. Não só a Lava-Jato, eu diria que o Mensalão e a (operação) Zelotes também. Só que a Lava-Jato, embora não tenha matado, conseguiu arpoar à baleia. Eu passei por algumas situações na minha carreira em que eu percebia que não tinha incomodado a bandidagem, e sim o governo. Estava pegando na baleia, entende?
A Lava-Jato é irreversível?Os impactos são irreversíveis. O que acontece é que o Brasil não é um monolito. O Congresso passou por uma renovação grande, mas alguns atores do crime institucionalizado seguem no poder. Em outros países, um político pego por corrupção se retira da vida pública. No Brasil, a primeira coisa que um político faz é botar a culpa em todo mundo, dizer que é perseguido e tentar se eleger de novo. E muitas vezes consegue. Esse processo é histórico, não vamos resolver em cinco minutos. É preciso também que a sociedade siga engajada.
É preocupante que as pessoas comecem a duvidar de tudo?Tem que desconfiar de tudo. Não há uma fraude no Brasil. Há um país dentro de uma fraude. O Sérgio Cabral é um “case” nesse sentido, porque geralmente a gente desconfia de que há corrupção em determinado governo, e nesse caso a gente se pergunta se havia governo dentro daquela corrupção.
Houve amadurecimento da própria PF e do Ministério Público durante o processo?Para felicidade da Lava-Jato, a equipe do MPF é muito alinhada com os delegados em Curitiba. Historicamente, existe uma disputa de espaço entre procuradores e delegados. Quem perde com isso é a sociedade. A PF sempre será protagonista das investigações, mas não quer fazer as coisas sozinha. A participação do MP é necessária.
Por que tantas investigações antes da Lava-Jato não deram certo?O grande aprendizado é que, quanto mais alto você investiga, mais cuidado é necessário. Torna-se um jogo de xadrez. O aprendizado é que investigações desse naipe precisam ser tecnicamente perfeitas.
O livro menciona “distrações” à atividade da Polícia Federal. Quais seriam elas?Essa parte podre da política funciona como uma espécie de metástase. Uma forma de minar a capacidade da polícia é jogar mais missões para ela executar. A questão das drogas, por exemplo, não deve ser tratada como uma guerra. Acho, sim, que a droga é um flagelo, faz mal à sociedade, mas a única repressão que vejo como efetiva é descapitalizar essas organizações.