Ronaldo Ausone Lupinacci*
Este artigo teve como ponto de partida o livro “COMO AS DEMOCRACIAS MORREM”, escrito por dois professores de ciência política da Universidade de Harvard, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, e que vem obtendo larga divulgação. A visão dos autores do referido livro é muito diferente da orientação desta coluna. Mas, corresponde à visão das oligarquias que controlam as nações ocidentais. O livro nasceu das apreensões suscitadas nos Estados Unidos com a eleição de Donald Trump, e resultados eleitorais semelhantes em outras partes do planeta.
Se as democracias podem morrer interessa saber como surgiram, para investigar eventual nexo entre o nascimento e o óbito. É certo que a democracia enquanto forma de governo existiu desde, aproximadamente, a formação das primeiras cidades. Era praticada na Grécia antiga sob a forma de democracia direta. Contudo, a democracia representativa é bem mais recente, pois teve origem com a independência dos Estados Unidos da América, na segunda metade do século XVIII, em circunstâncias muito diferentes.
Até a Revolta Protestante ocorrida no Século XVI a sociedade ocidental se manteve coesa sob o ponto de vista religioso e filosófico. Mesmo a Revolução Protestante comandada por Lutero, Calvino, Henrique VIII entre outros, se trouxe divisões, não foi suficiente para destruir o edifício da civilização católica na Europa e na América Latina. A religião esteve indissoluvelmente ligada ao regime monárquico, até mesmo em países de maioria protestante, como, por exemplo, a Inglaterra.
No século XVIII o ideário republicano foi espalhado na Europa e nas Américas pela corrente filosófica denominada iluminismo. Foi impulsionado pela independência dos Estados Unidos, que adotou tal regime em decorrência de particularidades próprias daquele país, mormente a necessidade de resguardar a unidade de um povo dividido em diferentes credos religiosos. Tal ideário adquiriu força de expansão com a Revolução Francesa de 1789, ainda que na França a república democrática só tenha se implantado estavelmente depois de cem anos.
Na raiz do movimento republicano-democrático estava a ideologia igualitário-liberal, de natureza relativista e laicista inspirada, como se disse, na filosofia iluminista. A sociedade perdera a unidade de pensamento que a caracterizava. A perda da unidade de pensamento, obviamente, gerou dissensões sobre matérias religiosas, morais, políticas, econômicas, culturais enfim. Para impedir a desagregação abrupta da sociedade se imprimiu o caráter relativista e laico ao Estado, para o qual todas as correntes de pensamento, e todos os programas de ação passaram a gozar de plena cidadania, até mesmo aqueles empenhados em derrubar o sistema liberal-democrático, como foram o comunismo, o nazismo e o fascismo. Estes últimos resultaram em organizações políticas de índole totalitária, vulgarmente designadas por ditaduras.
Assim, no século passado, ao lado de democracias liberais proliferaram as ditaduras (comunismo, nazismo, fascismo, “franquismo”, “salazarismo”, “peronismo”, “getulismo”), caracterizadas pela onipotência do Estado, ou quase tanto. Todavia, a onipotência ao Estado revelou-se extremamente danosa, com o que a palavra democracia passou a ter outra acepção, vale dizer, a da única forma de governo apta a resguardar as liberdades públicas legítimas e os direitos naturais. Contudo, as democracias modernas por serem inorgânicas, vale dizer oriundas de revoluções, golpes de estado e, ademais, por estarem escoradas no relativismo filosófico, nunca foram completamente assimiladas pelas convicções dos povos.
Acrescente-se que a decadência moral crescente dos últimos séculos, afora a artificialidade intrínseca das repúblicas produzidas em série no período, constituiu fator adicional de fragilidade e instabilidade das democracias representativas. Ganância, sede de poder, imoralidade e amoralidade, sectarismos atuaram como fatores de corrosão, embora a república democrática não seja de si mesma corrupta por natureza.
Levitsky e Ziblatt em seu livro descreveram inúmeros fatos ocorridos desde algum tempo atrás procurando uma explicação para a derrocada das democracias. Baseados na história dos Estados Unidos deram ênfase às regras não escritas e à tolerância mútua como principais elementos de solidez do regime democrático representativo. Por isso, se referem à polarização surgida em torno de temas tais como o aborto, o “Medicaid” (programa de assistência médica a pessoas de baixa renda), o “casamento” entre pessoas do mesmo sexo, a lei de privacidade em instalações públicas (“Lei do Banheiro”), diferenças religiosas e raciais que comprometeram a tolerância mútua. De fato, assuntos que não comportam acordos ou compromissos acabam gerando tensões sociais que se refletem na política. Estamos vendo isso aqui no Brasil em torno de temas como o aborto, o porte de armas de fogo e os rigores da legislação ambiental. Conservar a democracia nos países ocidentais parece difícil exatamente porque a coesão ideológica pereceu há muito tempo, e, e as facções em desacordo se acham cada vez mais aferradas a seus princípios.
Em conclusão a tese de Levitsky e Ziblatt se mostra superficial embora a descrição que dão a certos fatos esteja correta. Realmente, hoje as democracias se acham ameaçadas não tanto por revoluções armadas ou golpes de estado, mas por fatores de erosão que vicejam nelas mesmas, oriundos dos antagonismos diversos existentes na sociedade, e, que se transmitem para as posições políticas. Este clima, por sinal alimentou, aqui, a pregação por golpe militar antes das eleições de 2018, porque parte da opinião pública se achava exasperada com a situação do País, e não via esperanças nos partidos políticos.
Além do mais, os referidos autores ignoram o fenômeno histórico da luta entre a Revolução – que pretende eliminar qualquer vestígio do Cristianismo na sociedade – e, a Contra-Revolução que pretende eliminar a Revolução[1]. Abordam alguns assuntos relacionados àquele conflito sem fazer a conexão lógica entre eles. De qualquer forma é significativo que o fracasso das repúblicas democráticas esteja sendo admitido por seus próprios admiradores que, neste aspecto relativo ao fracasso, têm o mesmo ponto de vista dos monarquistas como eu.
O fenômeno focalizado por Levitsky e Ziblatt vem sendo analisado por outros estudiosos desde que surgiram as chamadas democracias autoritárias há aproximadamente duas ou três décadas[2]. Parece haver, portanto, um consenso em relação ao crepúsculo das democracias liberais, incapazes de organizar a sociedade de modo harmônico e estável. O autoritarismo tende a descambar para a tirania como se tem visto em várias partes do mundo (totalitarismo). Mas, este é quadro político patológico que deve ser evitado porque a suspensão do exercício de certos direitos somente pode ser admitida, excepcionalmente, para curtos períodos em que os maus indivíduos se aproveitariam da plena liberdade para violar direitos alheios. Estas reflexões que, salvo fatores extraordinários, só amadurecerão muito lentamente, irão determinar, no futuro, uma reformulação total das instituições políticas.
Ronaldo Ausone Lupinacci*
* O autor é advogado e pecuarista.