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sexta-feira, maio 06, 2011

Não dá para julgar os outros

Carlos Chagas

Aparício Torelli, gaúcho, estudante de Medicina em Porto Alegre, logo ganhou horror à profissão que escolhera. Preferia muito mais a boemia e o jornalismo. Mesmo assim, compareceu às provas iniciais, inclusive aquela vetusta e medieval prova oral, quando o aluno se apresentava perante a banca de três engalanados professores, instalados num tablado que os deixava em nível bastante superior, olhando de cima o infeliz que iriam sabatinar.

Os demais colegas tinham que assistir em silêncio o sacrifício, apavorados porque a vez deles ia chegar. Aporelli, como ele já se assinava em artigos humorísticos, recebeu uma saraivada de indagações feitas pelo presidente da banca, de colarinho duro e sobrecasaca, pois o ano era de 1928.

Não respondeu nenhuma, incompatibilizado que estava com os livros. Humilhado, ouviu o mestre catedrático dirigir-se a um contínuo postado às suas costas, ordenando: “Seu José, traga um monte de capim!”

A ofensa não poderia ser pior, diante da classe inteira. Foi quando a verve livrou Aporelli do rótulo de “burro”, ao atalhar: “E para mim um cafezinho…”

Essa historinha tão galhofeira quanto verídica se conta a propósito da empáfia com que certos caciques do PSDB vêm tratando os raros companheiros ainda empenhados em conduzir o partido ao leito inaugural da opção socialista de antes. Dirigem-se a eles, os doutos do Alto Tunanato, reprovando-os e chamando-os de anacrônicos trogloditas. Exortam os bedéis a buscar feixes de capim na forma de textos e livros sobre a nova economia globalizante e neoliberal. Chegam a sustentar o fim da História e a submissão de todos à prevalência do mais forte sobre o mais fraco, ou à livre competição entre quantidades e valores desiguais.

Está faltando um Aporelli para, nesse instante, pedir também, à maneira do cafezinho, um exemplar de “O Capital”, da Karl Marx…

***

ENTRE SEM BATER

Para continuar no universo de um dos mais completos jornalistas registrados em nossa crônica, vai outro episódio singular. Integrando as tropas gaúchas que tomaram de assalto o Rio e o país, com a Revolução de 30, Aparício Torelli logo desligou-se da horda de centauros instalada no governo e passou a praticar a mais contundente forma de jornalismo jamais registrada no planeta: o humorismo.

Lutava com dificuldade para manter suas publicações, uma delas “A Manha”, que se contrapunha ao “Correio da Manhã” e botou a imaginação para funcionar.
Naqueles tempos bicudos em que o poder militar mesclava-se ao pretenso poder civil de Getúlio Vargas, ficou sabendo da existência, numa das favelas do Rio, do célebre Almirante Negro, que no começo do século liderara a revolta da Armada e humilhara os poderes constituídos, até ser miseravelmente traído pelos próprios. Depois de sofrer horrores e de ficar perturbado da cabeça, o ex-cabo João Cândido morava de favor no alto de um morro, esquecido e abandonado.

Já então se intitulando o “Barão de Itararé”, em homenagem à batalha que não houve, na divisa do Paraná com São Paulo, Aporelli aproximou-se do ex-herói e, em seus momentos de lucidez, foi recolhendo espetacular e verdadeiro depoimento sobre a revolta dos marinheiros, que puseram de cócoras o Rio de Janeiro e o governo Hermes da Fonseca.

A antiga capital federal entrou em convulsão quando apareceu publicado o primeiro capitulo do que seria uma longa série de reconstituições de nossa História. Não mais os vencedores a estavam escrevendo, deturpada e mentirosa. Era a versão dos vencidos.
Não se passaram 24 horas quando a pequena sala onde Aporelli trabalhava, na Avenida Rio Branco, viu-se invadida por um grupo de oficiais de Marinha. Ele foi agredido, seqüestrado e levado para um ermo do antigo Distrito Federal, que nem se chamava Barra da Tijuca, naqueles idos.

Quase nu, amarrado a um poste, viu-se obrigado a engolir as páginas de sua reportagem inicial. Libertado pela benesse de alguns pescadores, logo retornou às atividades jornalísticas, mas, por cautela, suspendeu a série de reportagens mal iniciada, que décadas depois levou para o túmulo sem revelar o conteúdo.

Mas vingou-se. Na porta de seu modesto gabinete, mandou afixar uma placa: “Entre, sem bater”…

Registra-se também um paralelo entre a lição do passado e o tempo presente. Será por conta da infausta experiência do Barão que o PT desistiu de compilar em livro o sacrifício dos companheiros que nos tempos bicudos da ditadura tiveram de engolir, e muito mais, sofrer por conta de sua resistência? Ficando em silêncio até hoje?

***�

AQUELE MALDITO CAFEZINHO

Melhor continuar como mesmo personagem. Deflagrada a ditadura do Estado Novo, em 1937, a aparência era de que Getúlio Vargas transformara-se no grande ditador, responsável por tudo o que de horror acontecia no país em matéria de tortura, censura, lesão aos direitos humanos e sucedâneos. Claro que era, apesar dele preocupar-se muito mais com a legislação trabalhista e a concessão de direitos sociais ao povão, das férias remuneradas à estabilidade no emprego, da jornada de oito horas aos institutos de previdência social e à organização dos trabalhadores em sindicatos.

Aparício Torelli sobrevivia, mas depois do golpe passou a frequentador assíduo das delegacias de polícia e cárceres variados. Já pertencia ao Partido Comunista e continuava exercendo a única profissão a que se dedicou por toda sua longa vida, o jornalismo.
Certa feita encontrava-se redigindo-se um de seus artigos de crítica ao regime quando sentiu falta de um cafezinho. Desceu até o botequim mais próximo e estava para sorver a xícara quando uma poderosa mão assenta-se sobre seu ombro e um investigador de polícia dá-lhe voz de prisão. Conduzido à Penitenciária da rua Frei Caneca, surpreende-se porque os dias se sucedem, na cela, sem que tenha sido interrogado, maltratado ou processado.

Passam-se as semanas, até os meses, e nada. Num daqueles surtos de falsa liberalidade que marcam todas as ditaduras, e diante de denúncias que corriam de boca em boca, sem a participação da imprensa censurada, o Supremo Tribunal Federal decide investigar lesões praticadas contra os direitos humanos pelos esbirros da ditadura.

Chega à cela do Barão o ministro Castro Nunes, sequioso de perscrutar apenas uma parte da violência verificada contra cidadãos presos sem culpa formada e indaga: “Sr. Aparício, pode me dizer por que está preso?”

A resposta foi fulminante: “Pensei que o senhor é que me informaria da supressão de minha liberdade.”

Estabeleceu-se um daqueles momentos surrealistas que depois de algum silêncio foi cortado por Aparício Torelli, para satisfação do ministro: “Só posso supor uma hipótese!”

A atenção foi total, uma das páginas obscuras da ditadura poderia ser revelada, e o Barão completou: “Foi por causa daquele maldito cafezinho! Eu estava pronto para tomá-o quando um policial impediu-me, levando-me preso. Será o cafezinho a mais evidente prova da subversão no país?…”

Pois é. Assim se encontra o PMDB, ávido de conquistar cada vez mais cargos e funções no segundo escalão do governo, mas colocado de quarentena sem saber o porquê o gelo recebido do palácio do Planalto. Qualquer dia um peemedebista encontrará a explicação: “porque queremos colaborar com o governo…”

Fonte: Tribuna da Imprensa

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