Em segundo artigo sobre o assunto para o Congresso em Foco, o procurador Manoel Pastana afirma que o que diferencia os três casos apelidados de mensalão são os tamanhos das organizações criminosas
Manoel Pastana*
Os fatos indicam que a diferença entre os esquemas delituosos, conhecidos por mensalões, está, primeiramente, no tamanho da organização criminosa. No mensalão do PT, produziram-se atos normativos sucessivos (a Medida Provisória 130/2003, que se converteu nas Leis 10.820/2003 e 10.953/2004 e os Decretos 4.799/2003 e 5.180/2004, além de instruções normativas). Essa produção legislativa e normativa e mais inúmeros atropelos a procedimentos administrativos, bem como a utilização escancarada da estrutura da Administração Pública, denotam que tal organização criminosa é, de longe, a maior que já operou neste país. Para se ter uma idéia, o esquema PC Farias, que derrubou o Governo Collor, parece uma “batida de carteira”, se comparado ao Mensalão do PT.
A outra diferença entre os mensalões, na verdade, não diz respeito aos esquemas delituosos, mas na forma como foram combatidos. Por exemplo, no mensalão do PSDB, o chefe do Executivo foi acusado. No mensalão do DEM, o chefe do Executivo foi acusado, sem contar o insistente pedido de intervenção no Distrito Federal. Já no mensalão do PT, o chefe do Executivo NÃO foi acusado, apesar de haver mais provas contra ele do que contra o apontado, na denúncia, como o líder do esquema criminoso.
No meu livro autobiográfico, De Faxineiro a Procurador da República, revelo que a “falha” não ocorreu apenas na acusação, mas também na investigação. Por exemplo, Marcos Valério, apontado como o operador do esquema criminoso, destruiu provas (queimou notas fiscais etc.), mas o ex- procurador-geral da República Antonio Fernando, autor da denúncia do mensalão do PT, não viu motivos para prendê-lo.
Em quase duas décadas atuando na área criminal, eu nunca vi um investigado dar tanto motivos para ser preso. Também nunca vi tanta resistência por parte de um membro do Ministério Público para que um investigado, destruidor de provas, não fosse preso. Por exemplo, 19 membros da CPI (tinha 20 membros) instaram o dr. Antonio Fernando a requerer junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) a prisão de Marcos Valério, mas o então procurador-geral não concordou e até chegou a discutir na imprensa com o presidente da CPI.
Curioso é que, pouco tempo depois, o mesmo procurador promoveu embate na mídia com um ministro do STF que havia deferido liminar em habeas corpus levando à liberdade presos da operação Navalha. Neste caso, que não havia notícia de que algum investigado estivesse destruindo provas, o procurador Antonio Fernando queria a prisão a todo custo, contrariando seu comportamento anterior em que fez de tudo para não pedir a prisão de Marcos Valério, que destruía provas descaradamente. É muito estranho.
Mais estranho ainda foi o fato de Valério pedir para colaborar nas investigações, a fim de obter o benefício legal da delegação premiada (que reduz ou até isenta de pena o delator) e o dr. Antonio Fernando não concordar, sob o argumento de que a delação seria “prematura” e “inoportuna”. Ora, os benefícios da delação premiada são aferidos no final do processo, quando se saberá se a ajuda do delator contribuiu efetivamente para a identificação dos demais envolvidos.
Portanto, não há como falar-se em prematuridade de um procedimento cuja aferição faz-se no final. Destarte, a atitude de Antonio Fernando, para lá de estranha, deixou escapar instrumento valioso para apurar delitos praticados por mentes criativas, cujas provas os criminosos não costumam registrar em cartório. Por exemplo, no mensalão do DEM, se não fosse a colaboração do delator Durval Barbosa, jamais o ex-governador José Arruda perderia o mandato. Se fosse aceita a colaboração de Marcos Valério, certamente o estrago seria ainda maior (bem maior) do que o proporcionado por Durval Barbosa, que levou para a prisão o ex-governador do DF.
Apesar da investigação ter ocorrido de forma absolutamente incomum, sobraram provas para acusar Lula, mas o ex-presidente não foi denunciado. Lula não poderia ficar de fora da ação penal que tramita no STF, pois, sem ele, que praticou atos materiais, rompeu-se o elo probatório para se chegar aos autores intelectuais, que não praticaram atos materiais. Por exemplo, na denúncia está escrito que o banco BMG foi favorecido por empréstimos consignados em folha de pagamento a aposentados, proporcionando lucros extraordinários e que parte do dinheiro teria sido repassada ao partido da situação por meio de empréstimos fictícios (recentemente, um relatório da PF diz que, além do PT, mais três empresas suspeitas de envolvimento no mensalão também receberam “empréstimos” do referido banco). A denúncia diz que foi a Medida Provisória 130/2003 que criou a situação para a prática delitiva (autorizou empréstimos a aposentados consignados em folha de pagamento).
Ocorre que quem assinou a famigerada medida provisória não foi José Dirceu, apontado na denúncia como o líder da quadrilha. Também não foi Dirceu quem assinou o Decreto 5.180/2004 que socorreu o referido banco em face do indeferimento de sua pretensão, pois a medida provisória não deixava claro se banco não pagador de benefício previdenciário (situação do BMG) poderia participar dos empréstimos consignados em folha de pagamento dos aposentados. Daí, o BMG teve sua pretensão rechaçada pela Procuradoria Federal do INSS, sendo necessária a edição do referido Decreto que permitiu ao banco não pagador de benefício habilitar-se. Esse decreto não foi assinado por José Dirceu.
Também não foi José Dirceu quem assinou as mais de dez milhões de cartas enviadas a aposentados do INSS instando-os a fazer os empréstimos, favorecendo o BMG de tal forma que, com apenas dez agências bancárias, superou a Caixa Econômica Federal (CEF) com suas mais de duas mil agências. A CEF era a única instituição financeira que concedia os empréstimos e já vinha fazendo há quase um ano, quando o BMG, favorecido pelo mencionado decreto e atropelos administrativos que o habilitaram em prazo recorde, ingressou no mercado. Até meados de 2005, com tais empréstimos, a CEF faturou cerca de dois bilhões, trezentos e oitenta milhões de reais; enquanto que o minúsculo BMG, segundo o Tribunal de Contas da União, favorecido pela propaganda de mais de dez milhões de cartas, faturou mais de três bilhões de reais. Isso em prazo inferior a um ano (outubro de 2004 a agosto de 2005).
Também não foi José Dirceu quem assinou o Decreto 4.799/2003, que alterou a forma de publicidade do Governo Federal, proporcionando às empresas de Marcos Valério o domínio e o controle do serviço de publicidade da área federal. Isso permitiu as mais variadas formas de fraudes. E mais. Proporcionou a Marcos Valério status de administrador de recursos públicos, passando por suas mãos recursos públicos destinados a patrocínios e pagamentos de publicidade.
Quem assinou a Medida Provisória 130/2003, os Decretos 4.799/2003 e 5.180/2004, bem como as cartas-propaganda foi o ex-presidente Lula. Como ele não foi denunciado, não há como chegar ao apontado na acusação como sendo o líder da quadrilha, José Dirceu, pois este nada assinou e nem mandou bilhetes. Aliás, no meu livro antecipo a absolvição de Dirceu, justamente porque não se tem como chegar nele, uma vez que não praticou atos materiais. Quem os praticou foi o ex-presidente Lula, mas como ele não foi acusado, não se tem como alcançar os prováveis autores intelectuais do engenhoso esquema criminoso, pois estes não deixaram rastros. Assim, apenas integrantes braçais da quadrilha que deixaram pistas serão punidos, brandamente.
Causou-me estranheza o fato de o Dr. Antonio Fernando não ter pedido a prisão de Marcos Valério, embora fosse público e notório que ele estava a destruir provas; ter recusado auxílio deste, porque achou que a delação premiada seria prematura e inoportuna; ter deixado de fora da acusação o ex-presidente Lula; ter pedido a prisão de todos os acusados quando ofereceu a denúncia, sabendo-se que se o Relator aceitasse o pedido de prisão dos acusados (ele indeferiu), causaria tumulto processual que inviabilizaria a causa (o pedido intempestivo da prisão foi muito estranho, pois a hora de ter feito era quando Valério destruía provas. Porém, quando era preciso, Antonio Fernando não quis de jeito nenhum). E mais. É sabido pelos bons profissionais do Direito (o dr. Antonio Fernando é um bom profissional do Direito), que a denúncia deve ser uma peça objetiva e concisa, sendo que as discussões de pormenores ficam para as alegações finais.
Ocorre que a denúncia do mensalão não segue esse padrão, o que é muito estranho, porquanto as peças do dr. Antonio Fernando são bem objetivas e concisas. A denúncia em questão é muito longa (136 laudas), com muitos relatos complementares (vários pormenores despiciendos) que a enfeitaram com inúmeras referências em intermináveis notas de roda pé, feitas com letrinhas de difícil visualização, o que faz a leitura da peça acusatória ser extremamente cansativa e de difícil compreensão. A inicial acusatória está eivada de divagações que, data venia, mais parecem contos policiais desconexos. São muitas historinhas paralelas. Cotejando-se com o indisfarçável esforço no sentido de que Valério não colaborasse, a redação prolixa da denúncia deixa margem para muitas interpretações.
Salta aos olhos a forma diferenciada como foram conduzidas a investigação e a acusação do mensalão do PT, comparando-se aos outros mensalões. O pior é que a série de absurdos não se limita a tratamento processual diferenciado, mas também a doentias persecuções realizadas contra procuradores que tentaram investigar e/ou processar (de verdade) integrantes do partido da situação. Esse assunto é objeto do meu próximo artigo.
*Procurador da República e autor do livro autobriográfico De Faxineiro a Procurador da República
Fonte: Congressoemfoco