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quarta-feira, abril 19, 2023

Coleira que chicoteou o entregador Max devia constar de algum museu do racismo

Publicado em 19 de abril de 2023 por Tribuna da Internet

Adriana de Souza Alves, mãe do entregador Max Angelo Alves dos Santos, levanta a cabeça do filho após ele comparecer à 15ª DP (Gávea) nesta quarta-feira

Mãe de Max manda o filho levantar a cabeça após depor

Dorrit Harazim
O Globo

Agosto de 1955, Estados Unidos — foi sucinta a última recomendação da mãe de Emmett Till, de 14 anos, ao embarcá-lo para visitar familiares no estado sulista do Mississippi: “Lá não é como aqui em Chicago. Você é um menino negro, não deve arrumar confusão”.

Os tios que hospedaram o garoto curioso lhe fizeram advertência semelhante. Também os priminhos da mesma idade falavam em nunca chamar a atenção, mesmo em programas tão inocentes como sair para comprar doces. Foi numa noite daquele agosto escaldante que Emmett entrou no mercadinho Bryant, de propriedade de um branco, acompanhando o primo Curtis Jones.

UM ASSOVIO – No caixa estava a mulher do dono. Os meninos fizeram a compra, saíram rapidamente e ainda estavam a fazer hora quando a sra. Bryant também saiu para pegar o carro. Um assovio atrevido, insolente, proibido cortou o silêncio e permaneceu no ar. Saíra da boca de Emmett.

“Ele não se deu conta do perigo” — relatou depois em livro o outro primo, Simeon Wright.

Na manhã do dia seguinte, o dono do mercadinho e um irmão entraram armados na casa onde Emmett ainda dormia. Levaram o menino até uma camionete que os aguardava. “É ele?” — perguntou o dono. “É” — respondeu uma voz feminina de dentro do veículo.

TRUCIDADO – Passados quatro dias, o que restava do corpo de Emmett foi encontrado no rio de uma cidade vizinha. Cabeça e rosto formavam uma massa desfigurada, monstruosa, de pouca semelhança humana. Emmett fora surrado, alvejado e amarrado com arame farpado antes de ser descartado.

A história teria se encerrado ali, como tantas outras à época, pois os irmãos assassinos foram rapidamente absolvidos por um júri supremacista. Não foi assim. A história entrou para a História.

Mamie Till recebera os restos mortais de Emmett em caixão fechado, por via férrea. Ela sabia que o enterro em Chicago seria concorrido, por isso decidiu expor o amontoado de carne que um dia foi seu filho num caixão com tampo de vidro, sem retoques.

CENA ATERRADORA – O impacto sobre familiares, amigos, a comunidade negra e demais participantes foi irreprimível — documentários da época mostram desmaios, mulheres em agonia, outras tantas em choque.

O amor e a tenacidade dessa mãe em dor fizeram mais. Mamie percorreu redações de jornal pedindo que publicassem fotos do filho em vida, sorridente, junto à dele trucidado. De início, somente publicações negras em luta pelos direitos civis aceitaram.

Mas a realidade acabou se impondo, e quem ainda hesitava em condenar o arcabouço racista da nação americana sentiu-se encorajado a entrar na luta. Historiadores consideram a caso Emmett Till, anterior ao caso Rosa Parks, o marco inicial da frente ampla que marcharia até conseguir mudar as leis segregacionistas uma década depois.

DISSE A MÃE – “Foi quase insuportável sentir o horror das pessoas ao ver meu filho [naquele estado]” — declarou Mamie Till à época. “Mas pensei que a alternativa seria ainda pior. Desviamos o olhar da nossa cruel realidade por um tempo longo demais. Sem a exposição, ninguém acreditaria. É hora de o mundo ver o que eu vi”.

Não só o mundo viu, como continua vendo. Em 2005, por motivos forenses, o corpo de Emmett teve de ser exumado e o caixão trocado. A família decidiu então preservar o caixão original e pensou em doá-lo a alguma entidade de direitos civis. Foi contactada por ninguém menos que o colossal Smithsonian Institute e, desde então, o artefato faz parte do acervo do Museu Nacional da História e Cultura Afro-Americana, na capital do país.

“Nunca imaginamos que chegaríamos a tanto” — admitiu Simeon Wright à revista Smithsonian. “Visitantes do mundo inteiro vão poder saber por que aquele caixão está ali. E mães, pais ou algum curador haverão de contar a história. Quando ninguém faz nada para defender o Estado de Direito, a sociedade se destrói sozinha”.

E NO BRASIL… – Na semana passada, dois casos registrados em vídeo conseguiram furar nossa acomodação ao cotidiano racista do país. No Rio de Janeiro, o entregador Max Angelo dos Santos, morador na Rocinha, não sabe como contar aos três filhos que foi chicoteado com coleira de cachorro por uma moradora branca de São Conrado. A troco de nada. Ou melhor, por ser negro.

“Complicado uma criança assistir a um vídeo desses, é bem pesado” — disse.

A agressora, Sandra Mathias Correia de Sá, ex-atleta de vôlei, já o chamara de “marginal”, “preto”, “favelado” em ocasião anterior, apenas pelo fato de o entregador usar o mesmo espaço público — a rua — que ela.

NO SUPERMERCADO – Em Curitiba, a professora Isabel Oliveira, que fora a um supermercado Atacadão comprar leite para a filha, sentiu-se seguida no estabelecimento por mais de meia hora por um funcionário da casa. “Isso não pode ser normal”, pensou. E não aceitou. Resolveu usar o corpo negro como grito de afirmação. Com o testemunho do marido, que filmou a cena, retornou ao Atacadão, ali desnudou-se e entrou na fila do caixa vestindo apenas calcinha e sutiã, e uma pergunta rabiscada na própria pele: “Eu sou uma ameaça?”

A coleira que chicoteou o entregador Max poderia constar de algum museu do racismo no Brasil de 2023. O basta da professora Isabel aponta para um amanhã sem paciência com a grande perversidade nacional: o racismo.


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