Se consumada a gastança desenfreada dos planos petistas, Lula terá cometido seu erro mais grave antes da posse
É certo que o presidente Jair Bolsonaro promoveu o desmonte de várias áreas da máquina pública, dos órgãos ambientais à vacinação, das universidades à cultura. A equipe de transição para o novo governo tem se esmerado em usar tal cenário como pretexto para defender toda sorte de despesa, sem nenhum lastro ou sobriedade fiscal.
Urdiu-se uma narrativa em que todo gasto se justifica para resgatar o país da “terra arrasada” a que foi lançado por Bolsonaro. Não se imagine que a preocupação é apenas social, com saúde, educação ou programas de transferência de renda. Nada disso. Estão em curso projetos para repor privilégios à elite do funcionalismo e dar aumentos salariais indiscriminados, recompor fundos setoriais e subsídios, liberar verbas para investimentos de retorno duvidoso e satisfazer grupos de pressão organizados (dos profissionais de enfermagem às empresas de transporte coletivo).
A crença em que existam recursos abundantes para tudo é absurda diante dos fatos e da lógica. Mas não apenas. Se for levada adiante a gastança desenfreada dos planos petistas, será o erro mais grave cometido pelo presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, antes mesmo da posse. E ele será o primeiro a se arrepender — se não agora, com certeza nos primeiros seis meses de governo, quando ficar clara a perda do voto de confiança que recebeu dos setores produtivos, do mercado financeiro e do investidor externo.
O cacife com que Lula foi eleito começou a ser minado pela Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição apresentada ao Senado na segunda-feira. Ela pede permissão para o governo despender durante quatro anos R$ 198 bilhões acima do teto de gastos, ou perto de 2% do PIB. Se aprovada na forma como está, implicará despesas de R$ 849 bilhões até o fim do mandato de Lula. De longe, é o maior explosivo na bomba fiscal gestada em Brasília. Mas não o único.
Tramita no Congresso uma proposta estapafúrdia para que juízes e procuradores passem a ganhar 5% de aumento automático a cada cinco anos, ao custo de R$ 20 bilhões até 2026. Outro projeto prevê aumento de 18% a todos os servidores do Judiciário (mais R$ 20 bilhões em quatro anos). Na esfera estadual, também há sinal de descontrole. O aumento salarial de 50% para o governador paulista elevará o teto do funcionalismo do estado, criando dispêndios de R$ 6 bilhões até 2026. É provável que outras unidades da Federação tentem seguir o péssimo exemplo de São Paulo.
Noutro front, decisões judiciais têm aumentado a pressão por despesas. Na quinta-feira, a União perdeu no Supremo Tribunal Federal (STF) a ação conhecida como “revisão da vida toda”, que deverá ter impacto negativo anual de R$ 52 bilhões nas já deficitárias contas da Previdência. Enquanto isso, os delírios da equipe de transição preveem aumentar pensões e aposentadorias por invalidez, a um custo que pode beirar R$ 200 bilhões até 2029.
A continuar a corrida maluca por despesas cada vez maiores, o resultado é conhecido. Apenas a PEC da Transição já significaria uma reversão na trajetória positiva do resultado primário. O superávit de 1,4% do PIB previsto para este ano se tornaria um déficit entre 1,4% e 2% em 2023. Haveria maior necessidade de endividamento, com as consequências conhecidas: alta da inflação e dos juros, retração da economia, perda de empregos e renda.
O resultado do PIB do terceiro trimestre já traduz a desaceleração prevista para o ano que vem. O próximo governo e o Congresso podem ajudar a piorar ou melhorar o cenário. É óbvio, mas necessário repetir: não há crescimento sem clima de otimismo, e nada pior que a perspectiva de uma crise fiscal e de descontrole na dívida pública para corroer a confiança dos investidores.
Ainda há tempo para mudar de rota. Na discussão sobre a PEC da Transição, o valor da autorização para gastar acima do teto é o mais importante. É esperado que o Congresso reduza o pedido original. Circula na equipe de transição a percepção de que, com gastos extras entre R$ 135 bilhões e R$ 150 bilhões, seria possível manter a despesa pública em torno de 19% do PIB, patamar equivalente ao de 2022. Como mostrou reportagem do GLOBO, é uma visão otimista demais. Diante do cenário mais desafiador para crescimento e inflação, a folga não passa de R$ 96 bilhões.
As propostas mais sensatas em tramitação, dos senadores tucanos Tasso Jereissati (CE) e Alessandro Vieira (SE), autorizam, respectivamente, gastos de R$ 80 bilhões (sob o teto) e R$ 70 bilhões (acima do teto). Seria o suficiente para o novo governo manter o Bolsa Família em R$ 600, garantir R$ 150 mensais a famílias com crianças de até 6 anos e dar aumento real para o salário mínimo. Revisando o Bolsa Família para combater fraudes e melhorar o foco, sobraria mais dinheiro.
Outro ponto relevante é a regra para as despesas. Ao propor o Bolsa Família fora do teto, o governo eleito enfraquece o arcabouço fiscal vigente antes de apresentar alternativa. Sem limitação, é certo que haverá novos aumentos, e o programa nunca mais estará sujeito a uma regra de gastos. A proposta de Jereissati é mais sensata por prever o aumento do teto para abrigar o excedente das despesas.
Para evitar arrependimentos, o governo eleito precisa abrir mão de promessas menos prementes, como ajuda aos endividados (custo anual de R$ 20 bilhões) ou subsídios a ônibus municipais (R$ 5,5 bilhões). O Congresso precisa jogar no lixo propostas estapafúrdias como o quinquênio para juízes e procuradores, além de ser parcimonioso em qualquer reajuste ou recomposição salarial.
Brasília precisa de um choque de realidade. A PEC apresentada na semana passada dá uma medida da distância entre a percepção dos políticos e os fatos. O Brasil espera que os senadores e deputados façam sua parte para afastar os riscos. A situação fiscal hoje não é desesperadora, mas pode se deteriorar rapidamente. O Brasil terá superávit e, se o novo governo souber conter a gastança na largada, resgatará a confiança, atrairá investimentos, fomentará o crescimento — e certamente terá mais recursos à disposição mais adiante. Lula já fez isso uma vez. Deveria saber fazer de novo.
O Globo