Foram necessários dois meses, um quebra-quebra, uma (até aqui) tentativa de atentado no aeroporto de Brasília e algumas prisões de apoiadores para Jair Bolsonaro (PL) enxugar as lágrimas e vir a público demonstrar, de seu jeito atabalhoado de dizer as coisas sem dizer, que aceita a derrota para Lula (PT) e que o mundo não acaba em 1º de janeiro.
Se tivesse dito isso antes, em 1º de novembro, quase nada do que se viu na capital e algumas cidades do interior, sobretudo no centro-oeste, teria acontecido. Ele teria poupado ao menos uma multidão de tomar chuva e ficar exposta a raios e trovoadas em uma mobilização em seu nome.
Em sua live derradeira, Bolsonaro performou, pela última vez como presidente, o pensamento caótico que se tornou sua marca pessoal. Primeiro, justificou os atos golpistas. Disse que eles eram pacíficos, ordeiros e tinham razão de ser: a revolta, criada e alimentada por ele, diante de uma suposta parcialidade da Justiça nas últimas eleições.
Depois disse que se manteve em silêncio para “não tumultuar ainda mais” as coisas. Ué, mas não eram manifestações ordeiras e sem tumulto?
Bolsonaro, hoje está mais claro do que nunca, apostou todas as fichas em uma ação descoordenada, sem base na realidade, em que seu partido, o PL, denunciava supostos problemas em parte das urnas eletrônicas para melar o jogo “dentro das quatro linhas”.
Ele e seu entorno apostavam que as mobilizações nas ruas, úteis até ali, serviriam como elemento de pressão sobre o Tribunal Superior Eleitoral. Tudo o que conseguiu foi uma multa de R$ 22 milhões por litigância de má-fé.
Sem meios para continuar na Presidência sem ter vencido nas urnas, Bolsonaro precisou engolir, sem necessariamente aceitar, a derrota, à espera do caos.
Foi quando parte de seus apoiadores resolveu provocar, eles mesmos, o tumulto para forçar o presidente a declarar estado de sítio e suspender o processo de transição.
A estratégia virou caso de polícia quando um motorista de caminhão-tanque desconfiou que bolsonaristas haviam instalado uma bomba em seu veículo em direção ao aeroporto. Foi aí que o rumo da história começou a mudar.
Segundo o Datafolha, nada menos do que 75% dos brasileiros repudiam os atos antidemocráticos que Bolsonaro insiste em dizer que não são antidemocráticos, mas legitimamente movidos pela revolta de uma perseguição que jamais existiu.
Todas as vezes que a Justiça precisou tomar medidas contra sua campanha era porque sua campanha havia ultrapassado a linha entre o flerte, a incitação e a violência onde o bolsonarismo sempre surfou.
O mesmo sobre os atos que ele jura serem pacíficos.
Se seus apoiadores estivessem em frente ao Exército com mensagens de amor do tipo “Bolsonaro, estamos com você” ninguém precisaria responder a processo algum.
Mas há um limite entre a liberdade de manifestar a revolta e o desejo, expresso e muitas vezes colocado em prática, de explodir as ruas e as vias institucionais para que suas vontades sejam atendidas. Não tem nada de democrático nisso.
Bolsonaro não desconhece esse detalhe, mas prefere dizer que atos isolados não podem ser depositados em sua conta.
Como fez durante seu mandato, Bolsonaro se apegou a um sentido próprio, como uma licença poética, ao que considera direito à “liberdade” para acenar alguma conexão com os eleitores que começavam a se rebelar contra seu sumiço.
Cabe tudo nesse termo torcido e retorcido pelo presidente – dos limites para quem é avisado que não pode explodir bomba na casa do amiguinho à insistência da mãe para uma criança tomar banho.
A frustração com a lembrança de que vivemos em sociedade é, para Bolsonaro, uma revolta com potencial de se converter em voto. É esse mundo sem regra, sem mediação, em que apenas a vontade justifica qualquer ação, que o bolsonarismo, numa ilusão de ótica, promete erigir, quem sabe, em uma segunda oportunidade.
Visando um retorno triunfal, Bolsonaro abriu caminho para liderar a oposição a partir de agora. Primeiro, afastando para longe a bomba que apoiadores gostariam de explodir em seu nome, como já havia feito com o sangue espalhado pelo extremista que invadiu uma festa de aniversário em Foz do Iguaçu (PR) e matou um petista, também em seu nome.
No mundo ideal de Bolsonaro, os radicais são livres para interpretar como bem quiserem o seu conceito abstrato de liberdade (“vocês sabem o que precisam fazer”, costumava dizer o mestre). Se inocentes morrerem na guerra, ensinou o mesmo Bolsonaro em seus tempos de deputado, tudo bem.
Mas se o tiro sair pela culatra, ele faz o que sempre faz nessas horas: tira o corpo fora e deixa o aliado, ou seguidor, sangrando sozinho na estrada.
Hoje existem alguns pares deles sangrando sob a chuva.
Eles acreditaram que Bolsonaro tinha um plano. Um plano delineado entre silêncio e mensagens subliminares em fotos e postagens aparentemente banais. E Bolsonaro queria que eles seguissem acreditando. Primeiro, por 72 horas. Depois, até fim dezembro. Agora, até outubro de 2026.
Haverá tempo até lá para convencer alguém que seu nome não pode ser associado ao que realmente virou: um movimento extremista, violento e fora da caixa de qualquer sentido se não o mitológico.
O bolsonarismo terá de se reinventar sem sua criatura. Ao menos enquanto ela retoma o fôlego.
Como um comandante vacilante e aterrorizado, Bolsonaro manda seu exército de seguidores irem à frente para a luta que ele vem logo atrás. Não com ideias, mas com ódio, que é o que ele soube entregar até hoje.
A partir de agora, Bolsonaro deixa de ser vidraça e volta a ser pedra. Já apostou com quem quiser ouvir que o governo petista será um fracasso, e será necessário manter a base unida e mobilizada para voltar um dia como Rei Sebastião.
Fará isso tirando um período sabático, descansando com direito a assessores em Miami, nos EUA, enquanto a bolsa de pandora de seus malfeitos será escancarada, já sem a prerrogativa de foro ou a boa vontade de procuradores e delegados escolhidos a dedo, em forma de processos.
Em seu ato final, Bolsonaro mostrou mais uma vez que coragem nunca foi seu forte. Mas ele é bom em torturar as palavras e dar novos significados a ela, conforme o desejo de seus apoiadores. Não faltará verdade torturada para dar insígnia de herói ao presidente fujão.
Essa inclinação à servidão voluntária fará com que, simbolicamente, muitos de seus apoiadores sigam em vigília à espera de um milagre. Ou de um retorno triunfal.
Bolsonaro, no fim das contas, manda a eles uma grande banana. Vão na frente que ele vem logo atrás.
Bahia Noticias