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sábado, maio 07, 2022

Qualquer cidadão pode acionar o Judiciário para defesa do patrimônio cultural

 

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Ao contrário do que muitos possam pensar, qualquer cidadão brasileiro pode, em nome próprio, questionar judicialmente atos que sejam lesivos ao patrimônio histórico do país em decorrência da ação ou da omissão do poder público.
 
Presente no ordenamento jurídico brasileiro desde 1824, a ação popular é um importante instrumento de exercício da cidadania (status activus civitates), na medida em que permite que o próprio cidadão (basta a condição de eleitor) bata às portas da Justiça para a defesa de direitos e interesses que pertencem a todos, viabilizando o cumprimento do direito-dever solidário que toca ao poder público e à sociedade na tarefa de tutelar os bens integrantes do nosso patrimônio cultural.
 
É oportuno, ressaltar, por primeiro, que a Constituição Federal vigente impôs coercitivamente a todos os entes federativos, com a colaboração da comunidade, o dever de defesa dos bens culturais, de forma que a atuação positiva em tal matéria é obrigatória, não podendo se alegar discricionariedade para descumprir os mandamentos constitucionais, entre os quais podemos citar:
 
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
III - proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos;
IV - impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural;
 
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
 
§ 1º - O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.
 
Logo, todo ato omissivo (por exemplo, não exercício do poder de polícia administrativa e vigilância sobre bens culturais privados, permitindo o abandono; não fiscalização de engenhos de publicidade que comprometam a ambiência de bens tombados; descaso com a conservação de bens públicos de valor cultural tais como arquivos, imóveis, museus e bibliotecas) ou comissivo (por exemplo, concessão de alvará de demolição de bem de significativo valor cultural; concessão de licença sem exigência de prévio estudo de impacto de vizinhança; concessão de alvará de funcionamento para atividade vedada em zona de proteção do patrimônio cultural) que viole os dispositivos acima mencionados são ilegais e lesivos, podendo ser objeto de controle jurisdicional.
 
Como garantia de efetivação do direito a todos ao patrimônio cultural hígido, a Carta Magna previu no artigo 5º, entre outros instrumentos, a ação popular nos seguintes termos: “LXXIII - qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência”.
 
Desta forma, a ação popular está para a tutela do direito à boa administração pública, ao meio ambiente e ao patrimônio cultural, assim como o Habeas Corpus está para a tutela do direito à liberdade.
 
Nessa toada, conquanto o regramento da ação popular esteja previsto na Lei 4.717/65, tal norma precisa ser interpretada sob as luzes do novo ordenamento constitucional e dentro do contexto do microssistema de tutela jurisdicional coletiva composto da própria lei de ação popular que se integra à lei da ação civil pública e ao Código de Defesa do Consumidor.
 
Em tal cenário, nos termos da dicção constitucional, basta que o ato seja lesivo ao patrimônio cultural para que possa ser questionado judicialmente pela ação popular, sendo prescindível a ilegalidade.
 
O STJ tem entendido que o conceito de ato lesivo é amplo, já que não significa apenas atos que causem prejuízo financeiro direto ao estado. Os atos considerados prejudiciais podem ser por desvio de finalidade, inexistência de motivos, ilegalidade de objeto, violação a princípios da administração pública, entre outros aspectos passíveis de anulação.
 
No que diz respeito ao provimento jurisdicional que pode ser emanado em ação popular, a fim de assegurar a plena utilidade do instrumento e o alcance de seus objetivos previstos no texto constitucional[1], entendemos ser possível, para além da decretação da nulidade do ato lesivo e da condenação ao ressarcimento dos danos causados, a imposição de obrigações de fazer e não fazer. Sobretudo em matéria de meio ambiente e patrimônio cultural, em que prevalecem a prevenção de danos e a tutela específica de reparação, a ação popular pode ter o condão de fazer com que o poder público atue positivamente a fim de cumprir suas obrigações, devendo ser relegada a segundo plano a pretensão ressarcitória, que se mostra de pouca ou nenhuma valia em casos tais.
 
Assim, dentro do contexto do microssistema de tutela jurisdicional coletiva[2], deve ser aplicado no âmbito da ação popular o disposto nos artigos 83 e 84 do Código de Defesa do Consumidor, que estabelecem a máxima amplitude da tutela jurisdicional, nos seguintes termos:
 
Art. 83. Para a defesa dos direitos e interesses protegidos por este código são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela.
 
Art. 84. Na ação que tenha por objeto o cumprimento da obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.
 
A jurisprudência pátria já tem alcançado esse entendimento, conforme os seguintes precedentes do STJ:
 
A Lei 4.717/1965 deve ser interpretada de forma a possibilitar, por meio de Ação Popular, a mais ampla proteção aos bens e direitos associados ao patrimônio público, em suas várias dimensões (cofres públicos, meio ambiente, moralidade administrativa, patrimônio artístico, estético, histórico e turístico) (REsp 453.136/PR, relator ministro Herman Benjamin, 2ª Turma, DJe 14/12/2009).
 
Pode ser proposta ação popular ante a omissão do Estado em promover condições de melhoria na coleta do esgoto da Penitenciária Presidente Bernardes, de modo a que cesse o despejo de elementos poluentes no Córrego Guarucaia (obrigação de não fazer), a fim de evitar danos ao meio ambiente (RESP 889.776/SP – ministro Castro Meira, 2ª Turma. j. 4/10/2007).
 
Outra questão de relevo diz respeito à possibilidade da defesa, pela ação popular, de bens de valor cultural que não são protegidos pela via administrativa. Quanto a tal aspecto, a prévia proteção pelo tombamento ou atos administrativos análogos não é condição para a propositura da actio popularis. Aliás, a sua utilização mais se justifica em casos tais, onde a inércia estatal se demonstra de forma flagrante.
 
Como bem destacado por Nicolao Dino:
 
O fato de a Administração Pública não adotar a providência de tombamento não impede a obtenção de medida de proteção na esfera jurisdicional. O tombamento não constitui o valor cultural de um bem, mas apenas o declara. A ausência de tombamento não implica, portanto, inexistência de relevância histórica ou cultural. Esta pode ser reconhecida na via judicial, sanando-se, por este caminho, a omissão da autoridade administrativa.
 
Trata-se, como dito, de suprir omissão do poder público, ofensiva a direito de titularidade difusa. E isso representa, sem dúvida, a assunção e o exercício de indiscutível e saudável função política, reafirmando o papel do Ministério Público e do Poder Judiciário como instituições co-responsáveis pela operacionalização das políticas públicas necessárias à realização dos múltiplos valores postos na Constituição[3].
 
No mesmo sentido são os ensinamentos de Rui Arno Richter[4]:
 
Assim, se o Poder Executivo e o Poder Legislativo omitirem-se na preservação e acautelamento de determinado bem ou de um conjunto de bens de valor cultural, a iminência de sua destruição, deterioração ou mutilação exige a possibilidade de remédios jurídicos à disposição da sociedade civil e do cidadão para invocar a tutela do Poder judiciário, buscando decisão judicial como outra forma de acautelamento e preservação do patrimônio cultural.
 
Estes instrumentos imprescindíveis são a ação civil pública e a ação popular, que mais irão contribuir para atingir os fins para as quais foram concebidas se interpretadas pelos profissionais do Direito com o mesmo sentido de garantia de acesso à ordem jurídica justa que inspirou estas criações.
 
O posicionamento jurisprudencial também tem sido no sentido de que não há necessidade de prévia proteção administrativa para se buscar a tutela judicial a fim de evitar danos ao patrimônio histórico e artístico do país, como se extrai da seguinte decisão do TJ-SP:
 
O tombamento é, sem dúvida, a principal e a mais tradicional forma de se preservar o patrimônio histórico e cultural de uma comunidade. Mas, não é a única. Tanto que mesmo no caso de omissão do Poder Executivo, possível é, para alcançar esse objetivo, valer-se da via judicial, com o emprego da ação civil pública ou da ação popular (TJ-SP – EI 55.415.5/3-02 – Voto 5.747 – j. 28/3/2001 - rel. Gonzaga Franceschini).
 
Quanto a aspectos processuais, vale ressaltar que devem figurar no polo passivo da ação o ente público que detém competência para o agir administrativo, os agentes públicos responsáveis pelo ato lesivo (por ação ou omissão), bem como os particulares que sejam beneficiários diretos do ato (artigo 6º da LAP). O Ministério Público acompanhará a ação, cabendo-lhe apressar a produção da prova e promover a responsabilidade, civil ou criminal, dos que nela incidirem, sendo-lhe vedado, em qualquer hipótese, assumir a defesa do ato impugnado ou dos seus autores (artigo 6º, parágrafo 4º, da LAP)[5]. Para instruir a inicial, o cidadão poderá requerer às entidades públicas as certidões e informações que julgar necessárias, bastando para isso indicar a finalidade das mesmas, que deverão ser fornecidas em 15 dias (artigo 1º, parágrafo 4º, da LAP).
 
Na defesa do patrimônio cultural, caberá a suspensão liminar do ato lesivo impugnado (artigo 5º, parágrafo 4º, da LAP), sendo de se registrar que deve ser aplicado em tal momento processual o princípio da prevenção de forma a impedir a consumação de danos irreversíveis ou de difícil reparação.
 
O Poder Judiciário brasileiro tem sido acionado com relativa frequência por meio da ação popular a fim de obstar atos lesivos ao patrimônio cultural, podendo ser citados os seguintes casos de sucesso:
 
a) determinação da reconstrução de plataforma da estação ferroviária histórica do Município de Ressaquinha – MG (TJ-MG - Apelação Cível 1.0056.99.000538-3/002, relator(a): desembargador(a) Corrêa Junior, 6ª Câmara Cível, julgamento em 4/10/2016, publicação da súmula em 14/10/2016);
 
b) impedimento de demolição, pela prefeitura, de muros de antigo complexo fabril da cidade de Limeira – SP para fins de expansão de uma avenida (TJ-SP, Apelação/Reexame Necessário 0020492-09.2012.8.26.03, 8ª Câmara de Direito Público, relator desembargador Rubens Rihl, julgado em 22 de julho de 2015);
 
c) suspensão da determinação de corte de árvore centenária existente no município de Raul Soares – MG (TJ-MG - Agravo de Instrumento-Cv 1.0540.07.013194-6/001, relator(a): desembargador(a) Elias Camilo, 3ª Câmara Cível, julgamento em 1º/12/2011, publicação da súmula em 16/12/2011);
 
d) decretação de nulidade de lei de efeitos concretos que determinou a mudança das cores da bandeira municipal por interesses políticos, violando o patrimônio cultural imaterial representado pela heráldica da bandeira original (TJ-SP; APL 994.06.165641-4; Ac. 4405118; Marília; 2ª Câmara de Direito Público; rel. des. Alves Bevilacqua; Julg. 16/3/2010; DJESP 13/5/2010).
 
Enfim, a ação popular é instrumento hábil para a busca da proteção e preservação de bens culturais, materiais ou imateriais, públicos ou privados, independentemente da existência prévia de tombamento, registro ou outro ato análogo, pois os instrumentos de proteção não constituem o valor do bem, que é necessariamente antecedente, mas apenas o declaram.
 
O uso criterioso e responsável de tal ferramenta democrática pode contribuir de forma positiva e saudável para a melhor gestão do nosso patrimônio cultural.

 é promotor de Justiça em Minas Gerais, coordenador do Grupo de Trabalho sobre Patrimônio Cultural da Rede Latino-Americana do Ministério Público e membro do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos-Brasil).

Revista Consultor Jurídico,

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