A Polícia Federal (PF) extrapolou suas funções ao divulgar uma nota inesperada em que acusa o ex-juiz e ex-ministro da Justiça e Segurança Sergio Moro de mentir. Em entrevista à Rádio Jovem Pan, Moro, pré-candidato à Presidência pelo Podemos, criticara a atual gestão da corporação, afirmando que “hoje não tem ninguém no Brasil sendo investigado e preso por grande corrupção”. Era um exagero, obviamente. Mas a reação da PF foi pior. A nota estapafúrdia afirma que Moro “faz ilações” ao citar trocas do diretor-geral, Paulo Maiurino, como retaliações. E argumenta ter feito “mais de mil prisões apenas por crimes de corrupção nos últimos três anos”.
Como todo pré-candidato ou candidato, Moro tem o direito de expressar seus pontos de vista. A PF, em contrapartida, não tem o direito de entrar no debate eleitoral. Primeiro, porque, como instituição de Estado, não é sua função. Segundo, porque, nesse caso específico, é parte envolvida, o que recomendaria ainda mais manter a distância, a discrição e a sobriedade por que sempre se pautou. Moro deixou o governo em 2020 acusando o presidente Jair Bolsonaro de querer interferir na PF, denúncia sob investigação no Supremo Tribunal Federal (STF).
Desde a saída de Moro, a PF parece cada vez menos uma corporação que deveria servir a todos os brasileiros e mais a polícia de Bolsonaro, que a chama de “minha Polícia Federal”. Delegados que contrariam interesses políticos do governo têm sido sumariamente afastados ou postos na geladeira. Foi o caso de Alexandre Saraiva, que acusou o então ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles de atrapalhar investigações sobre apreensão recorde de madeira e de favorecer madeireiras. A delegada que atuou no processo de extradição do blogueiro bolsonarista Allan dos Santos também acabou defenestrada. O mesmo ocorreu com outros que investigam autoridades com foro privilegiado junto ao Supremo.
A despeito da competência indiscutível revelada em inúmeras operações, algumas investigações da fase atual chegam a constranger. Um exemplo é o caso Covaxin. Como mostrou a CPI da Covid, Bolsonaro foi informado sobre suspeitas de irregularidades na oferta de compra da vacina, mas as denúncias não foram adiante. A investigação da PF, que nem ouviu Bolsonaro, concluiu que ele não prevaricara porque a Constituição não afirma expressamente ser dever do presidente mandar apurar esse tipo de denúncia.
Claro que nem tudo está dominado. Na investigação sobre o vazamento de dados sigilosos de um inquérito da PF durante uma “live” do presidente e do deputado Filipe Barros, a delegada Denisse Ribeiro foi contundente. Disse ter encontrado indícios de que Bolsonaro teve “atuação direta, voluntária e consciente” na prática do crime de violação de sigilo funcional com Barros (Bolsonaro se recusara a prestar depoimento sobre o caso).
A reação fora de tom da PF aos comentários legítimos de Moro abre péssimo precedente e gera temores de que esse comportamento descambe para um bate-boca sem nexo ao longo da campanha eleitoral, que ainda nem começou. A Polícia Federal é instituição de Estado. E assim deve permanecer, a despeito das investidas do bolsonarismo, ávido por capturar e submeter organismos do governo a sua ideologia. É fundamental que a PF se mantenha afastada do debate político. Polícia não tem partido. Ou não deveria ter.
O Globo