Dora Kramer
Reza a boa norma da política que o estadista até leva desaforo, mas não carrega mágoas para casa. Sobrepõe as questões de Estado a ofensas pessoais. Sacrifica o individual em nome do coletivo.
É sábio para distinguir situações e, mediante o cotejo de perdas e ganhos, calibra suas atitudes de modo a equilibrar responsabilidades e necessidades.
O presidente Luiz Inácio da Silva, a despeito da celebração de suas habilidades no ramo, não possui esses atributos. Antes, exibe características opostas e age exatamente no sentido contrário ao do governante cujo objetivo primeiro é o zelo pelo bem-estar físico, espiritual, cultural e moral dos governados.
O presidente é hábil no terreno da autoajuda de efeito imediato, comanda como ninguém o espetáculo do crescimento da própria popularidade, mas mostra-se desprovido da noção do que seja a construção de um legado de avanços de longo prazo em benefício de toda a sociedade.
Há exemplos anteriores às mais recentes exorbitâncias que agora, tardiamente, depois de um longo período de celebração de tais atos como manifestação de genial pragmatismo político, provocam reações gerais de desagrado.
Quando se sentiu pessoalmente atingido por uma reportagem do correspondente do New York Times, Lula não hesitou em confundir-se com o Estado e expor o país ao ridículo ordenando a cassação do direito do jornalista ao visto de permanência no Brasil.
Sofreu pesadas críticas e pôs o pé no freio do autoritarismo que se delineava no início do primeiro mandato. Os mesmos reparos, no entanto, não sofreu nas inúmeras vezes em que confundiu a necessidade altiva de passar por cima de idiossincrasias ideológicas com a pequenez da irresponsabilidade de passar a mão na cabeça de infratores.
Distribuiu “cheque em branco”, avalizou práticas criminosas, deu abrigo a gente expulsa do poder público por desrespeito ao bem público, afrontou o Judiciário, chamou de hipócritas as restrições ao uso eleitoral da máquina administrativa, reclamou que o excesso de fiscalização faz mal ao Brasil, ignorando o mal que a impunidade secular faz ao país.
Com isso, esvaziou o valor dos princípios, aos quais costuma tratar com zombaria chamando de “principismo” e, assim, tudo se tornou permitido e as críticas ao esfacelamento ético perderam o sentido. Ou pior, adquiriram um caráter de puro farisaísmo.
Lula não fez isso sozinho. Contou com a colaboração de um razoável consenso segundo o qual os vencedores, principalmente se populares, são inimputáveis. O presidente se sentiu à vontade e, portanto não há razão para surpresa quando Lula acelera na defesa de tudo e todos cuja representação é a desonra, imaginando que isso lhe garantirá ganhos eleitorais e um lugar privilegiado na História.
O que surpreende é que não consiga enxergar o perigo do exagero. Cumprir um dever de solidariedade a um aliado como o senador José Sarney é uma coisa. Poderia fazê-lo dentro do limite da sóbria moderação de Estado.
Mas, não, optou por jogar-se nos braços da impostura ao ponto de produzir aquela frase sobre Sarney não ser uma pessoa comum, que não lhe rende nada além de perdas. Sarney, nesta altura com muito pouco ou quase nada a perder, fica bem. Ele, Lula, dono de um enorme capital, desperdiça patrimônio à toa.
Da mesma forma, é perdulário na derrama de elogios e afetos para Fernando Collor. Para quê? O estadista que engole desaforos em nome de um projeto compartilha palanque em Alagoas, não hostiliza o antigo adversário e dá por cumprido o ofício da boa convivência e do respeito ao voto do eleitorado local.
O governante que exacerba e perde a medida é o mesmo que confessa a “mágoa” com o Senado pela derrubada da CPMF, porque, por falta do dinheiro do imposto do cheque, não pôde “melhorar a saúde”.
Na realidade, Lula não se conforma é com a derrota política. A ajuda à saúde pública poderia ter dado apoiando o projeto do ministro José Gomes Temporão, de modernização da gestão do setor, largado no Congresso à posição contrária dos corporativistas de plantão, petistas à frente.
As pessoas percebem essas coisas. Pois é como diz o outro: não se engana todo mundo o tempo todo.
Em vão
Um dos principais, senão o principal motivo pelo qual o senador José Sarney resolveu ser presidente do Senado pela terceira vez, foi o de acreditar que no cargo teria influência sobre a Polícia Federal, na investigação envolvendo um de seus filhos.
Pois Fernando Sarney foi indiciado pela PF sob acusação de organizar quadrilha para atuar dentro do aparelho de Estado em prol de empresas privadas interessadas em ter acesso privilegiado a contratos com estatais.
Sarney achou que ao presidente do Senado ainda seriam devidas velhas reverências. Mais um de uma série de equívocos cometidos a partir da ultrapassada premissa de que o poderoso tudo pode. Foi-se o tempo.
Fonte: Gazeta do Povo
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