João Tancredo
Advogado, ex-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ e presidente do Instituto de Defensores de Direitos Humanos
O povo brasileiro está vendo a democracia se esvair no tempo. Cada cidadão sente os seus direitos escorrerem pelas mãos, sentindo na alma a impotência de não poder evitar o avanço da agressão contra si e contra o próximo. São sucessivos episódios trágicos que nos fazem ver o Brasil, que hoje ultrapassa os 190 milhões de habitantes, se tornar um país cada vez mais de seres e não de humanos. Ou o Poder Público resolve trabalhar com seriedade ou o caos tomará conta. Se é que ainda, no caso do Rio de Janeiro, dá tempo.
O recente episódio de tortura e agressão física e psicológica contra uma equipe de reportagem nos choca não só pela perversidade do ato como também pela sua autoria. Afinal, dessa vez não foram bandidos identificados por alguma facção já conhecida da sociedade. A barbárie foi cometida pelo próprio Estado, isto é, agentes do Estado travestidos de justiceiros, mas que no fundo se igualam a qualquer bandido. As milícias não passam de um braço clandestino do Estado, que devido a sua incompetência e ausência nas comunidades, permite a criação desses grupos.
A proposta divulgada pelas milícias de proteger o cidadão a qualquer preço, fazendo o que o Estado não faz, caiu por terra. Aliás, devemos deixar claro que o ocorrido com os jornalistas acontece há muito tempo com a população das favelas e dos bairros periféricos. O Estado sempre soube e nunca fez nada, como também nada fez nesse último caso.
Quando torturaram e mataram com requintes de crueldade o jornalista Tim Lopes, devido à repercussão bombástica do caso, a polícia foi incessante nas buscas e, sem disparar um tiro sequer, encurralou o autor do crime, prendendo Elias Maluco, no coração do Complexo do Alemão. Uma prova de que para os outros casos falta boa vontade e interesse. Por que até agora ainda não prenderam os milicianos? Vai ver não sabem os endereços das corporações (quartéis) em que os milicianos trabalham.
É do conhecimento da polícia todas as áreas dominadas pelas milícias, mas ninguém é preso. Nada acontece. Esses grupos, formados por "líderes comunitários", policiais, entre outros, contam até com apoio de políticos, o que nos faz entender tamanha morosidade e desinteresse em se acabar com eles. Há quem diga que outro motivo para o surgimento desses grupos são os baixos salários dos agentes de segurança. Mas imaginem se todos que ganham pouco passassem a extorquir, agredir e matar. Salário baixo não se aumenta praticando crimes. O Brasil, se esta fosse a hipótese, teria o maior exército de criminosos do mundo e definharia em um dia.
Infelizmente, do Oiapoque ao Chuí, temos um grande palco de negociatas, barganhas e troca de favores. Tais práticas existem desde o Descobrimento, atingindo hoje o ápice da imoralidade. Quando a polícia executa uma tarefa bem sucedida, como foi o caso da prisão do deputado Álvaro Lins, vem o afago significativo de parte de seus pares da Assembléia Legislativa.
Quanto mais lembramos, mais nos indignamos. Enquanto parte da classe política se beneficia com os privilégios, os mais pobres não só estão longe de gozar dos benefícios "comprados" pelos colarinhos brancos, como sofrem na pele a discriminação e a represália do próprio Estado, que desenvolve uma política de criminalização da pobreza.
Dia após dia o Estado Democrático de Direito previsto em nossa Carta Magna é ferido e desrespeitado. A sociedade perdeu o direito de ir e vir. Os mais necessitados e moradores de comunidades pobres e bairros da periferia perderam também o direito de ficar, isto é, perderam até o direito de usufruir da suas modestas, miseráveis mesmo, moradias.
E o pior é que o Estado parece conferir maior grau de periculosidade ao tráfico que às milícias. No entanto, os dois são igualmente nocivos. Essa inversão de valores mostra que é ele próprio, o Poder Público, que se rende à ilegalidade, dando a impressão que está ignorando tudo o que acontece a sua volta, maltratando seu próprio povo, esquecendo-se de que este é soberano perante a Constituição. Precisamos mostrar nas urnas nosso repúdio.
Fonte: JB Online
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