Foto: Antônio Cruz/Arquivo/Agência Brasil
Michel Temer05 de outubro de 2024 | 17:20Bets foram liberadas sob Temer de carona em Ministério da Segurança e com dedo do Congresso
Impulsionado pela busca de recursos para viabilizar a criação do Ministério Extraordinário de Segurança Pública, o governo de Michel Temer (MDB) liberou no Brasil, em 2018, as apostas de quota fixa, chamadas de apostas esportivas.
A nova pasta, chefiada por Raul Jungmann, foi anunciada um dia após o governo oficializar a intervenção militar no Rio de Janeiro. Foi nesse contexto que as bets, que hoje tomam conta da publicidade na televisão e no futebol, entraram em cena no país.
O dispositivo que autorizou as apostas de quota fixa, até então inexistente na legislação, foi incluído pelo Congresso Nacional na MP (Medida Provisória) que reformulou o Fundo Nacional de Segurança Pública —provendo recursos ao ministério recém-criado e ao setor.
Nessa modalidade, o apostador sabe exatamente o quanto ganha caso acerte. A medida —transformada em lei em dezembro de 2018— só tratava de apostas relativas a eventos reais de temática esportiva, por exemplo, jogos de futebol.
O texto previa que a regulamentação ocorresse em até quatro anos, o que não foi cumprido durante o governo de Jair Bolsonaro (PL).
Nesse intervalo, o mercado das bets cresceu no país em um limbo legal: sem arrecadação para a União, com empresas em paraísos fiscais e sem fiscalização ou mecanismos de segurança.
Os cassinos online (como o jogo do tigrinho), que alavancaram ainda mais a febre das bets e levaram o ministro Fernando Haddad (Fazenda) a falar em “pandemia”, só foram liberadas em 2023, já no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
A Folha conversou sobre a liberação das apostas com nove pessoas —entre integrantes do então governo e parlamentares— que acompanharam o processo, sob anonimato. Procurados, Temer e Jungmann não se manifestaram.
O Brasil passava por um ajuste fiscal depois da aprovação do teto de gastos em 2016. Naquele momento, as apostas online não figuravam entre as prioridades da pasta econômica.
Sem holofotes, o tema das bets pegou carona na força política do novo ministério, que precisava de orçamento, e foi inserido na lei com ajuda do Congresso. Segundo ex-integrantes da Fazenda e da Segurança Pública, o foco das conversas era a regulamentação das raspadinhas —também contempladas na legislação.
Quanto Temer anunciou o Ministério da Segurança Pública, no Rio de Janeiro, integrantes da nova pasta procuraram a equipe econômica para viabilizá-lo.
A solução foi unificar a lei das loterias (uma demanda da Fazenda) e turbinar o fundo, alimentado com arrecadação dos jogos —mas ainda não as apostas de quota fixa.
“O legado foi garantir recursos perenes para a segurança pública para modernizar instalações, equipamentos e assegurar custeio das operações policiais. Como resultado, não temos mais viaturas velhas e com falta de combustível, policiais com armamentos precários e delegacias desabastecidas”, disse à Folha o então secretário nacional de segurança pública, Flávio Basilio.
Uma primeira MP foi publicada em junho, mas o governo recuou na sequência, diante da reclamação dos Ministérios do Esporte e da Cultura. Um novo texto foi enviado ao Congresso Nacional em agosto, quando surgiram as apostas de quota fixa.
“Por sugestão da Sefel [Secretaria de Acompanhamento Fiscal, Energia e Loterias], apresentamos proposta que objetiva tornar factível a exploração dessa nova modalidade lotérica”, afirmou o relatório do senador paraense Flexa Ribeiro (então no PSDB).
“Na falta de norma que regulamente esse nicho lotérico, as apostas são realizadas em sítios eletrônicos hospedados no exterior, sem que o país arrecade nenhum centavo”, acrescentou.
A alteração se valeu de uma emenda do deputado Otávio Leite (PSDB-RJ), que pretendia permitir à Caixa Econômica Federal competir no mercado de apostas de quota fixa.
“O Brasil vivia uma evasão gigantesca com as apostas esportivas, já que os sites estavam fora do país e não tinha como proibir”, disse.
A emenda foi modificada e virou um capítulo da lei para criação de um mercado concorrencial do setor.
“Havia necessidade de arrecadação, em razão do ajuste fiscal, e a abertura à concorrência do mercado de apostas de quota fixa de eventos esportivos era uma alternativa com potencial, mas sem força política na época. Com a criação do Ministério de Segurança Pública, surgiram as condições para que a proposta avançasse”, afirmou o então secretário de Acompanhamento Fiscal, Energia e Loterias, Alexandre Manoel, hoje economista-chefe da AZ Quest.
O texto foi aprovado em dezembro. A regulamentação, contudo, submergiu na lista de prioridades do então ministro Paulo Guedes com a criação do superministério da Economia.
Equipe e estrutura insuficientes, a polêmica em torno do tema, a resistência dos evangélicos e a falta de um novo impulso político travaram a questão.
Houve avanço na parte técnica e uma minuta da regulamentação chegou à Presidência em 2022, ano eleitoral, mas Bolsonaro ignorou o prazo de quatro anos previsto por lei para a regulamentação e não assinou o texto.
“O prazo para regulamentação não foi cumprido, permitindo a proliferação descontrolada da atividade, com as terríveis consequências. O objetivo original, de regulamentar a atividade de forma responsável, foi totalmente alterado. Espero que o Congresso reverta esses equívocos”, disse Flexa Ribeiro.
O interesse político pelo tema só reapareceu em 2023, quando as apostas entraram na mira de Haddad como fonte de recursos para a União.
João Gabriel e Nathalia Garcia/Folhapress