Cidadania, direitos básicos fundamentais, deveres, violação de direitos. Você sabe exercer bem a sua cidadania? Pois é, muitas vezes, o cidadão se vê diante de situações em que seus direitos básicos fundamentais, previstos no artigo 6º da Constituição Federal, são violados.
Os exemplos estão todos os dias nos jornais: escolas sem professores, pais que não conseguem matricular seus filhos, hospitais sem material básico para atendimento, falta de médicos e superlotação nas unidades de saúde; famílias vivendo em locais insalubres, etc. É preciso, portanto, que o cidadão saiba quais os instrumentos jurídicos de que dispõe para fazer valer seus direitos e a que órgãos recorrer quando necessário.
Nesta entrevista, a juíza Luciana Leal Halbritter, professora-tutora de cursos a distância, coordenadora pedagógica da
Escola Livre de Direito e colaboradora do site
Visit Rio de Janeiro, explica os princípios e conceitos relacionados à cidadania, a importância de se conhecer as leis e os direitos básicos fundamentais, e quais os instrumentos que podem ser utilizados pelos cidadãos na hora de exigir o bom cumprimento dos direitos pelas autoridades competentes.
Rede Mobilizadores – O que é cidadania? Quais os princípios básicos para bem exercê-la?
R.: O conceito que se lê na Constituição se confunde com o conceito de titular de direitos políticos, sendo cidadão o nacional (brasileiro nato ou naturalizado) titular do direito de votar e de ser votado.
Em um sentido mais amplo, porém, é o indivíduo ser titular de direitos e deveres, e, sobretudo, dotado de um estado de consciência sobre seu papel político e como pessoa na comunidade em que vive. Engloba viver com dignidade, respeitar a dignidade do outro, estar comprometido em nada fazer para violar essa dignidade e, mais, em se esforçar para fazê-la valer.
A participação política do cidadão – não apenas votando, mas acompanhando os atos daqueles que ajudou a eleger, fazendo uso das ouvidorias dos órgãos públicos – é o principal meio de fazer valer sua dignidade, condição essencial do cidadão.
E dignidade significa ter acesso à moradia adequada, alimentação balanceada, educação de qualidade, atendimento médico de qualidade e em tempo adequado ao atendimento necessário, transporte público organizado, saneamento básico, coleta domiciliar de lixo, acesso à informação verdadeira, confiável, sobre a gestão dos bens públicos.
Rede Mobilizadores – O que é bem comum? O que o Estado deve fazer para assegurá-lo?
R.: Bem comum é o bem de todos, garantindo-se por meio da atuação estatal de que cada indivíduo possa, a seu modo, dentro de suas ambições e das possibilidades e oportunidades reconhecidas naquela sociedade, exercer atividades em benefício próprio ou de seus próximos para o seu crescimento moral, cultural, físico, e em todos os demais aspectos de sua personalidade.
Para assegurá-lo, o Estado deve administrar corretamente o dinheiro público, sempre pensando nos interesses e direitos do povo, e não dos governantes. Os bens públicos são assim chamados porque são de todos, são de cada cidadão de uma dada sociedade. E assim devem ser tratados e administrados pelos governantes. Prestando-se contas de tudo quanto é feito, ouvindo-se as reivindicações populares, e respeitando-se as normas constitucionais e regras legais pertinentes.
Rede Mobilizadores – Qual a importância de o cidadão conhecer a Constituição Federal e as competências administrativas da União, estados e municípios?
R.: Conhecendo a Constituição, e o que compete a cada ente federativo (união, estados e municípios), o cidadão, primeiramente, não se deixará enganar com promessas políticas muitas vezes impossíveis de serem cumpridas. Por outro lado, saberá exatamente a quem recorrer quando constatar algum tipo de descumprimento dos deveres dos entes federativos ou seus administradores, e o que exigir de cada um.
Rede Mobilizadores – O que são e quais são os direitos fundamentais? E os deveres de cada cidadão?
R.: Direito fundamentais, também conhecidos como direitos humanos, são direitos inerentes ao ser humano por sua condição de pessoa, indistintamente de quem seja. São direitos que, por se referirem ao quê da própria essência do ser humano, foram elevados – no Direito brasileiro – à condição de direito constitucional (previsto na Constituição) irrevogável (pois não podem ser excluídos da Constituição) e irrenunciável (o indivíduo não pode dele abrir mão). São: o direito à vida, à moradia, à dignidade humana, à saúde, à educação, ao acesso à Justiça, à honra, e várias outras garantias, inclusive de ordem penal.
Os deveres, por sua vez, decorrem das próprias relações entre as pessoas na sociedade em que convivem. O principal deles, a meu ver, é o dever de não causar dano. Significa que um indivíduo, um cidadão, não pode agir de modo a causar dano a outrem, devendo respeitar seus direitos.
Na esfera política, são alguns exemplos: alistar-se como eleitor, facultativamente dos 16 aos 18 anos e obrigatoriamente a partir dos 18; votar em todas as eleições, dos 18 aos 70 anos (quando o voto passa a ser facultativo), salvo justificativa a ser apresentada no prazo legal em caso de impossibilidade; realizar o alistamento militar aos 18 anos para homens.
Rede Mobilizadores – No Brasil muitos cidadãos ainda não têm assegurados seus direitos fundamentais. O que uma pessoa pode fazer quando, por exemplo, não consegue matricular um filho numa escola pública ou não consegue vaga num CTI de um hospital público?
R.: O modo mais eficaz de assegurar um direito como estes que esteja sendo violado é se socorrer do Judiciário, entrando com uma ação contra o ente que está descumprindo o dever correspondente a estes direitos. Pode ser o Estado, o Município ou a União, ou algum outro ente público, como uma autarquia ou empresa pública.
Em qualquer caso, deve o cidadão procurar a Defensoria Pública*1 de seu estado (para causas contra o estado ou o município) ou a Defensoria Pública Federal, de modo que se inicie um processo com um pedido liminar, baseado na urgência-emergência da situação se ser tutelada. Assim, haverá rapidamente uma decisão judicial que irá assegurar ao cidadão, cujo direito foi violado, o reparo ou o cumprimento do dever correspondente.
Também os escritórios-modelo das instituições universitárias e outras entidades de defesa de direitos possuem serviços de assistência jurídica gratuita ou a valores módicos, e são também ótimas opções para obter orientação e assistência jurídica, lembrando que a assistência de advogado é obrigatória nos processos judiciais.
Rede Mobilizadores – Que recursos um cidadão deve utilizar para comprovar que um direito foi violado?
R.: Documentos, como contratos, declarações escritas, cartas, e-mails, escrituras, fotografias, são bastante úteis. Testemunhas (pessoas sem relação familiar, ou de amizade íntima, ou inimizade com as pessoas envolvidas na situação que se pretende comprovar) que tenham presenciado ou participado dos fatos a serem comprovados. Por isso, é importante armazenar, ainda que em via digital, os comprovantes de tudo quanto se faça.
Para um processo judicial a prova é muito importante, pois a regra é que cada um comprove o que alega, e, se assim não faz, a pessoa pode até não ter o seu direito reconhecido, por deixar de comprovar os fatos que lhe servem de fundamento.
Rede Mobilizadores – Quando um cidadão deseja orientação sobre como proceder em relação a uma questão legal, que órgão pode procurar?
R.: As principais instituições que podem dar assistência ao cidadão, orientando-o, são a Defensoria Pública, o Ministério Público e a Ordem dos Advogados do Brasil. Os endereços das instituições são facilmente localizáveis através da internet, ou mesmo por meio das listas telefônicas de cada município.
Rede Mobilizadores – O que é a Defensoria Pública? Quando é possível acioná-la e o que é preciso para isso?
R.: Defensoria Pública é uma estrutura de órgãos públicos do Poder Executivo que substitui o advogado quando a pessoa tem um direito violado, pelo que precisa de representação diante da Justiça ou de outros órgãos, mas não pode pagar por esta assistência. Advogados concursados fazem essa assistência gratuita, atendendo, propondo demandas e acompanhando os processos até seu final.
Já o antigo Juizado de Pequenas Causas, hoje conhecido como Juizados Especiais, são órgãos do Poder Judiciário em que as pessoas que se sentem lesadas em questões de menor complexidade (causas em que o valor discutido é de até 40 salários mínimos, e que não precisem de prova pericial para serem decididas). Lá, as questões são levadas para serem decididas por um juiz.
Nas causas de até 20 salários mínimos, o cidadão pode procurar o juizado para apresentar suas reclamações sem estar assistido por advogado. Nas causas acima desse valor o advogado é necessário.
Não há custos para a propositura de uma ação em sede de Juizado Especial Cível, que é muito útil, por exemplo, para resolver questões de vizinhança ou reclamações sobre fornecedores.
Rede Mobilizadores – E o Ministério Público? Quando ele pode ser acionado e o que é preciso para isso?
R.: O Ministério Público (MP)*2 também é um órgão do Poder Executivo, que tem uma atuação diferente da Defensoria Pública. Ele não atua representando uma pessoa, em nome dela, como seu advogado. Ao contrário, ele atua nas causas em que há interesse público envolvido, ou mesmo antes que haja processo, firmando Termos de Ajustamento de Conduta (TAC)*3, por exemplo.
É importante ter em mente que o interesse público existe quando o bem afetado pertence a um dos entes federativos, quando direitos fundamentais são violados, quando direitos de menores ou idosos são ameaçados ou violados.
Sempre que houver uma situação deste tipo, portanto, o MP pode ser acionado, por meio de sua ouvidoria – que recebe reclamações, comunicações de crimes e violações de direitos, as apura e dá o encaminhamento necessário dentro da estrutura do próprio Ministério Público – ou em suas diversas promotorias, como de tutela do consumidor, do meio ambiente, ou eleitoral. Compete, porém, ao próprio promotor de justiça avaliar se é caso de sua intervenção. Se não for, orientará o cidadão a como proceder.
Rede Mobilizadores – E quando a violação do direito atinge toda uma comunidade, como, por exemplo, a falta de saneamento básico? O que os moradores podem fazer?
R.: O ideal é que procurem o Ministério Público, que poderá avaliar a situação com a isenção e o conhecimento necessários, optando aí sim pelo encaminhamento ideal da questão.
Rede Mobilizadores – O que é a ação civil pública? E a ação civil popular? Em que situações elas podem ser usadas?
R.: Ação civil pública é o instrumento legal de tutela dos interesses públicos ou coletivos. Há vários legitimados previstos em lei, como o Ministério Público por exemplo, mas não pode ser proposta diretamente pelo cidadão. O melhor caminho é que o indivíduo realmente busque orientação, encaminhando a questão ao MP, que avaliará se é caso de ação civil pública, ou da utilização de qualquer outro instrumento processual mais adequado ao caso.
Já a ação popular pode ser proposta por qualquer cidadão no gozo de seus direitos políticos, e visa proteger o patrimônio público de atos de improbidade ou de má gestão.
Rede Mobilizadores – Qual a importância de instrumentos como o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Estatuto do Idoso? Esses instrumentos têm ajudado a diminuir as violações de direitos? Por quê?
R.: Estes códigos e estatutos são leis que regulam de maneira diferenciada os direitos de certos grupos sociais os quais, por suas características, são mais vulneráveis e, por isso, mais suscetíveis a sofrerem abusos e discriminações. Estabelecem direitos específicos de proteção ao consumidor, ao idoso, à criança e ao adolescente. Por estabelecerem direitos, não propriamente são instrumentos que reduzem as violações. Como leis, preveem, contudo, ferramentas que permitem assegurar maior proteção a estes grupos específicos. Mas o uso de tais ferramentas pressupõe uma certa cultura dos cidadãos, que, conhecendo seus direitos, procurem orientação e o cumprimento regular de seus direitos.
Rede Mobilizadores – Muitas entidades oferecem serviços de assessoria jurídica gratuita e também algumas universidades contam com escritório modelo. Qual a importância desses instrumentos e como e quando eles podem ser usados?
R.: A assessoria jurídica gratuita prestada por entidades como associações, ONGs e escritórios-modelo de universidades públicas e privadas prestam um grande serviço à sociedade, na medida em que esclarecem dúvidas, dão orientação, e até representam as pessoas assistidas em processos judiciais e administrativos. Sempre que o cidadão se sentir lesado em um direito, ou mesmo tiver dúvidas a respeito de seus direitos e deveres, e de como agir em uma determinada situação, e não tiver condições financeiras de contratar um profissional, deve procurar instituições ou entidades que lhes orientem e adotem as providências cabíveis. Lembrando, é claro, que a avaliação da existência ou não de um direito a ser tutelado e da melhor forma de fazê-lo é do profissional que o atender.
Rede Mobilizadores – Além de buscar valer seus direitos fundamentais, os cidadãos devem acompanhar a atuação de seus representantes nos poderes Executivo e Legislativo. Como eles podem fazer isso? Quais os principais canais para o controle social das ações dos governantes e dos parlamentares?
R.: Além da mídia (jornais, revistas, rádio, tevê), em que os cidadãos podem se atualizar e conhecer os fatos recentes envolvendo a atuação dos poderes do Estado e de seus representantes, os sites oficiais são melhores e principais fontes de informação de toda a atividade estatal. Nos sites da Câmara dos Deputados*4 e do Senado Federal*5 é possível acompanhar os projetos de lei em andamento. No site da Presidência*6, é possível se informar sobre toda a atividade executiva do estado, os programas de governo, e inclusive acessar toda a base legislativa federal de modo confiável. No site do Tribunal Superior Eleitoral (TSE)*7 é possível acompanhar todo o processo eleitoral, bem como o histórico dos candidatos, as notícias mais recentes sobre as eleições e, de lá, acessar os sites dos Tribunais Regionais Eleitorais.
Todos estes órgãos possuem ouvidorias que recebem ligações, correspondências e e-mails dos cidadãos, respondendo a suas dúvidas, sugestões e reclamações.
——————
——————
Concedida à: Flávia Machado
Editada por: Eliane Araujo.