Publicado em 6 de novembro de 2023 por Tribuna da Internet
Luiz Felipe Pondé
Folha
Na segunda metade do século 20, a filosofia apresentava ao mundo das ideias uma teoria segundo a qual a era do cansaço com longas narrativas tinha chegado. A pós-modernidade chegara e, com ela a morte das utopias modernas de racionalidade universal em favor do bem e da verdade.
Sim, a modernidade nos entregou avanços técnicos e científicos, mas falhou em nos entregar a verdade última universal acerca das coisas e do mundo. Uma festa nos setores ditos progressistas — esse termo marketeiro — do pensamento acadêmico e jornalístico.
VERDADE POLÍTICA – A liberdade definitiva chegou, já que os poderosos não detinham mais o monopólio da verdade. Se episteme — conhecimento — é poder, logo, a verdade é sempre política, logo, quem tem poder detém a verdade. Lindo, não?
A partir daí, até vagabundos passam a usar a expressão “quem detém a narrativa, vence”. Enquanto na academia professores alienados da realidade —como quase sempre— ainda cantavam vitória devido a “morte” da verdade, e jornalistas brincavam com a era da pós-verdade. No mundo real, a direita, sempre feia, tomou para si o trunfo pós-moderno via redes sociais, essa mídia por excelência pós-moderna, e foi a forra.
Instâncias jurídicas começaram a ficar com medo dessa pós-modernidade à mão de todos e decretaram guerra às fake news. Mas o conceito de fake news pressupõe que exista algo de factual que não seja, ele mesmo, falso. Algo de resistente a mentira como uma rocha resiste ao vento.
LEGITIMIDADE – O jornalismo profissional depende para sua legitimidade que não seja reduzido a simples narrativa — apesar dos professores dos jornalistas na faculdade brincarem com essa ideia quando se trata de combater os “males” da sociedade. Caso contrário, para que irmos até a mídia profissional se tudo é narrativa? Que cada um escolha a sua e produza a sua. A população comum já tomou para si a boa nova pós-moderna. Esta hoje já não é filosofia, é senso comum de bêbado.
O público em geral já assimilou a ideia que tudo é narrativa —portanto, não existe verdade em lugar nenhum– e suspeita que os jornalistas servem a seus patrões, por isso comentários sempre trazem essa suspeita quando o seguidor não concorda com o autor do artigo.
Os profissionais teriam “preferências” que deixam à vista para aqueles movidos pela certeza de que tudo não passa de narrativa.
PARTIDARISMOS -Se X disse algo, é verdade. Se Y disse a mesma coisa, já não é verdade. Se afirmar que tudo é socialmente construído vale para defender X, ok. Se a mesma afirmação for feita para defender Y, já não vale.
Você acha que o preconceito contra X será superado por um conjunto de conteúdo aparentemente consistente? Essa crença trai sua ingenuidade ou má-fé. Ninguém adere a preconceitos por conta de desinformação, adere porque gosta. Banal assim.
Suspeito que uma porcentagem ínfima supere o preconceito contra Y por conta de informação aparentemente consistente. Neste caso, já não era preconceito.
SOLIDEZ DA IMAGEM – Interessante observar que essa “descoberta pós-moderna” pode se desdobrar em afetos bem distintos. Por um lado, ela pode produzir paixões avassaladoras por certas crenças — como no caso da crença na moda de crítica ao colonialismo, por conta da guerra no Oriente Médio. Toda narrativa com a qual você não concorda poderá ser lançada ao esgoto da crítica pós-colonial. Já o vídeo ou foto que lhe apetece, terá a solidez de um dado da mecânica de Newton.
Por outro lado, a boa nova pós-moderna poderá fazer de você um cínico que parece crer que o cinismo —”cinismo” no sentido do senso comum, que inteligentinhos de plantão não me venham com o filósofo antigo cínico Diógenes e seu barril— não tornará o ar que você respira insalubre.
Desde a pandemia já estouraram duas guerras. Os ucranianos estão esquecidos, claro, depois do frisson inicial. Agora o frisson são os palestinos. Talvez duas coisas permaneçam verdadeiras em meio aos escombros da pós-modernidade. Uma é o ódio, essa realidade atávica que resiste a toda música melosa e a toda jura vazia de amor à humanidade. A outra é que o grande público cansará de todas as vítimas.