A corrupção continua a impedir que o Brasil saia do subdesenvolvimento, da ignorância e da ditadura em câmera lenta, que a impunidade sistemática e seletiva vai construindo dia após dia
Por J.R. Guzzo (*)
Os dez países mais corruptos do mundo, de acordo com o último Índice de Corrupção Global da GRP, uma agência internacional de avaliação de risco, são Síria, Coreia do Norte, Congo, Iêmen, Sudão, Eritreia, Líbia, Guiné Equatorial, Venezuela e Afeganistão. A lista da Transparência Internacional, outra reconhecida autoridade na medição da roubalheira mundial, é muito parecida. Entram, por exemplo, o Haiti, a Somália ou o Burundi, e os que são deslocados para dar seus lugares a eles ficam logo abaixo na tabela — ou seja, rouba-se do mesmo jeito em toda essa turma. Há duas realidades iguais em todos esses abismos da ladroagem oficial — todos são pobres, e todos são ditaduras. E os dez países mais honestos do mundo, segundo essas mesmas organizações? São a Noruega, em primeiro lugar, e logo depois Finlândia, Suécia, Dinamarca, Estônia, Nova Zelândia, Holanda, Islândia, Austrália e Irlanda. Os Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra, Suíça, Canadá e outros do mesmo gênero vêm imediatamente em seguida. Há, também aqui, duas realidades indiscutíveis: todos são ricos, e todos são democracias. Sobra uma conclusão racional, e só uma. A corrupção é responsável direta pelo subdesenvolvimento e pela tirania; há outras causas, é claro, mas essas duas estão acima de qualquer dúvida. A honestidade do poder público, da mesma forma, é condição indispensável para a riqueza e a liberdade.
O Brasil está numa situação realmente assombrosa em relação a isso tudo. Teria de ser um dos países mais honestos do planeta, pois não há no momento um único preso por corrupção no sistema penitenciário nacional — nem o ex-governador Sérgio Cabral, condenado a 400 anos de cadeia por corrupção e atualmente não apenas solto, mas também figura de destaque no “campo progressista”. Mas o Brasil está lá na parte de baixo da classificação, a caminho da zona do rebaixamento, ao lado de lugares como Etiópia, Tanzânia ou Marrocos. Que mistério é esse? Se não há nenhum corrupto na cadeia, a única conclusão lógica é que não há corrupção no Brasil — assim como não há ninguém preso por comer carne humana, por exemplo, ou por assar bebês no forno, ao estilo do Hamas. Mas é exatamente o contrário: o Brasil, pela avaliação técnica de observadores imparciais, é um dos países mais ladrões sobre a face da Terra. Rouba-se tanto que até a OCDE, a organização que reúne os países mais bem-sucedidos do mundo do ponto de vista econômico e social, considerou necessário divulgar uma advertência oficial sobre a corrupção brasileira. Registra especificamente o seu espanto, ali, com a anulação de todas as provas da ladroagem confessa de dinheiro público que foi cometida pela construtora Odebrecht nos governos de Lula e de Dilma, de 2003 a 2016 — anulação determinada por ninguém menos que o Supremo Tribunal Federal.
'Como é possível não haver corrupção maciça num país em que o próprio tribunal supremo de Justiça decide que provas materiais de corrupção, como a livre confissão dos culpados e a devolução de milhões em dinheiro roubado, não valem nada?
Um exame do Enem, produzido pelos comissários do atual Ministério da Educação, obrigaria os alunos a responderem a qualquer pergunta sobre a responsabilidade do STF nesse delírio com a seguinte alternativa: “Nenhuma”. (A alternativa certa seria cravar: “Tudo culpa do Bolsonaro, junto com o agronegócio, a procura do lucro e os mecanismos de exploração do sistema capitalista”.) Mas o mundo não é o Enem, nem o plenário do Supremo, nem a elite subdesenvolvida que não vê nada de errado com esses sintomas de metástase no organismo público; acham, ao contrário, que agir contra a corrupção é uma manobra da direita para enfraquecer o “estado democrático”. O puro e simples exercício da lógica comum mostra que, se o sistema de Justiça de um país é incapaz de punir um delito, ou tomou a decisão de não punir, esse mesmo delito se torna legal para todos os efeitos práticos. Como é possível não haver corrupção maciça num país em que o próprio tribunal supremo de Justiça decide que provas materiais de corrupção, como a livre confissão dos culpados e a devolução de milhões em dinheiro roubado, não valem nada? É algo simplesmente incompreensível em qualquer sociedade civilizada. A OCDE, por exemplo, não entende; é uma das organizações mais respeitadas do mundo, e não entende, nem poderia entender. Um brasileiro racional, também não. Nem a OCDE nem o brasileiro racional entendem, da mesma forma, como a Justiça superior manda devolver a traficantes de drogas os iates, jatinhos e casas de praia comprados com dinheiro que ganharam no tráfico. Não entendem, igualmente, qual é a doutrina jurídica que leva o STF, o STJ e outras altas instâncias a absolverem automaticamente todos os acusados de corrupção. É corrupção? É no Brasil? Então não é crime. Não entendem por que são “bolsonaristas” — ou “fascistas”, na interpretação do ministro Barroso. É porque não faz nexo'
Não se trata, apenas, de passar vergonha na frente de todo o mundo democrático — o mundo que sabe pensar e que não fica fazendo passeata pela Palestina. Também não é o caso de deixar claro, mais uma vez, a piada que é a pretensão de dar o Prêmio Nobel da Paz para um político que ocupa a Presidência da República depois de ter sido condenado, justamente, pelos crimes de corrupção passiva e de lavagem de dinheiro. (As coisas não melhoram em nada quando esse presidente, segundo acabou de dizer um dos ministros do próprio STF, não estaria no cargo se não fosse a atuação da “suprema corte”.) O verdadeiro desastre, em toda essa legalização militante da ladroagem, é a progressiva construção de um regime político que pretende viver da falsificação permanente da realidade. É como a confederação de interesses que manda hoje no Brasil pretende continuar mandando, se possível para sempre, sem os inconvenientes de ser aprovada pela população, de entregar resultados e de respeitar os fatos. O “projeto de país”, aí, é a criação de falsos problemas durante os 365 dias de cada ano — e a sabotagem de toda e qualquer possibilidade de soluções verdadeiras. O Ministério da Educação não quer educar — quer provar que o agronegócio está destruindo o Brasil, enquanto mantém no país um dos piores sistemas de ensino público do mundo. O Ministério da Justiça não quer ser justo. Quer que Portugal devolva o “ouro de Minas Gerais”. O Ministério do Meio Ambiente não quer proteger o meio ambiente. Sua ministra diz que “estamos lançando nanomísseis na atmosfera”, que há mudanças na “regularidade cósmica” e que o mundo precisa de um “corretor humanitário para salvar as crianças”. Salvar do quê? Daquilo que ela chama de “guerra do clima”. Não diz nada sobre como salvar os adultos — e muito menos sobre a ONG pró-Amazônia com a qual está envolvida e que gasta com a própria folha de pagamentos 80% das verbas que recebe.
A coisa vai daí para o infinito — e, enquanto a farsa é santificada, a corrupção continua a impedir que o Brasil saia do subdesenvolvimento, da ignorância e da ditadura em câmera lenta, ou nem tão lenta assim, que a impunidade sistemática e seletiva vai construindo dia após dia. É o nosso grande projeto de chegar ao nível do Congo, da Eritreia ou do Haiti — e fora da OCDE e das sociedades mais prósperas, menos desiguais e capazes de oferecer oportunidades aos que têm pouco. Essa marcha para a calamidade, obviamente, não é culpa só do STF. Tão ou mais responsáveis são os milhares de deputados e senadores que passaram pelo Congresso Nacional nos últimos 35 anos. Foram eles que, ano após ano, eleição após eleição, aprovaram uma legislação suicida do ponto de vista penal. Todas as leis que impuseram ao Brasil nesse período foram feitas para beneficiar o crime e os criminosos. Sem exceção, até agora, só deram mais direitos para os acusados de violar o Código Penal e criaram mais obstáculos para a ação policial. O princípio geral é um insulto à sociedade: o criminoso é sempre vítima das condições sociais, a polícia é sempre suspeita de abusar da sua autoridade, cometer violência e desobedecer à lei. Como resultado, criou-se uma situação em que a polícia não pode prender, o promotor não pode acusar, e o juiz não pode condenar. Se a polícia prende, tem de soltar. Se o promotor acusa, as suas provas não valem. Se o juiz condena, o tribunal acima dele absolve. Se nada disso funcionar, a solução 100% segura para os corruptos, traficantes e criminosos com milhões para se defender é correr para o STF ou o STJ. Foi colocado em vigor, em ambos, um sistema permanente de indulgência plenária para todos eles. É recorrer da sentença e correr para o abraço.
Pouco se fala da destruição das leis penais por parte do Congresso; como em geral acontece, desastres coletivos são perdoados com muito mais facilidade. A Procuradoria-Geral da República e o ministro Alexandre de Moraes poderiam classificar como “crime multitudinário” a ação dos parlamentares na área penal. Não fazem isso, é claro. A história é muito diferente do que acontece neste momento com os brasileiros que estão sendo condenados a até 17 anos de cadeia por participarem de um quebra-quebra. A multidão, nesse caso, é culpada ao mesmo tempo pelos crimes de “golpe de Estado” e de “abolição violenta do estado de direito”. No caso das leis penais, a multidão de deputados e de senadores esconde quem é culpado — e o resultado é que ninguém tem culpa de nada. É o procedimento-padrão do sistema judiciário de hoje no Brasil. O réu não é culpado ou absolvido em função daquilo que fez. É preso ou solto em função daquilo que é. Ladrão do Tesouro Nacional, por exemplo, é sempre inocente — desde que esteja, é óbvio, do “lado certo da contradição histórica” e da luta de classes, tal como elas são entendidas pelo PT, o STF e os professores do Enem. O lado certo no momento é o lado de Lula e de tudo o que pode ser associado à esquerda em geral — ou de quem pode pagar a partir de R$ 1 milhão em honorários para os seus advogados.
O ministro Nunes Marques, num dos melhores votos já dados no STF nas últimas décadas, observou que os réus do distúrbio do dia 8 de janeiro não poderiam ser condenados por tentativa de golpe de Estado, pois estão sendo acusados, como explicou, de cometer um “crime impossível”. Ou seja, não poderiam, segundo a realidade física, objetiva e elementar dos fatos, dar um golpe de Estado contra coisa nenhuma — da mesma forma como não poderiam ser acusados de invadir o território da Transilvânia ou de alterar o movimento de rotação da Terra. Seu voto, naturalmente, foi derrotado com exclamações públicas de indignação por parte de oito dos seus nove colegas atuais. Mas chamou a atenção por permitir uma nova análise do Código Penal Brasileiro em vigor — a corrupção, no Brasil de 2023, é um crime impossível. Pode ser praticado à vontade por quem está na relação de beneficiários das altas instâncias do sistema judiciário. Mas não pode ser punido — e, se não existe entre os 200 milhões de habitantes do Brasil nenhum preso por corrupção, embora haja centenas de condenados top de linha, a corrupção, na prática, passa a ser um crime impossível de se cometer. Vamos ter, aí, mais um dos prodígios do nosso exemplar regime democrático.
(*) J.R. Guzzo é jornalista. Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi um dos criadores da Veja, revista que dirigiu durante quinze anos, a partir de 1976, período em que sua circulação passou de 175.000 para 1 milhão de exemplares semanais. Correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Responsável pela criação da revista Exame, atualmente escreve no Estado de S. Paulo e na Gazeta do Povo.
Revista Osete / O Povo Amazonense