Até lá (e depois), é preciso assegurar os atributos básicos da democracia e que quem tem armas, em eleições, delas não faça uso.
Por Pedro S. Malan* (foto)
Disputar é uma coisa, governar é outra foi o título do artigo publicado neste espaço em 8/4/2018. Pode parecer óbvio, e é, mas no Brasil o óbvio por vezes precisa ser reiterado. Por exemplo, não há razão para esperar 2023 para somente então avaliar o que pretendem fazer o presidente e o Congresso que serão eleitos em outubro próximo. Em 2018 opinei, como opino hoje, que os partidos que se julgam competitivos deveriam definir o teor de seu discurso e de suas promessas de campanha, incluindo as linhas gerais e prioridades do programa de governo.
Aparentemente, não é o que pretende Lula, a julgar pela longa entrevista recente à revista Time. Perguntado se não seria mais difícil governar desta vez, afirmou: “Só tem sentido eu estar candidato à Presidência da República porque eu acredito que sou capaz de fazer mais e fazer melhor do que eu já fiz. Eu tenho clareza de que eu posso resolver os problemas (do Brasil)”. Perguntado sobre qual Lula temos hoje, responde: “Sou o único candidato com quem as pessoas não deveriam ter essa preocupação porque eu já fui presidente duas vezes e a gente não discute política econômica antes de ganhar as eleições. Primeiro você precisa ganhar para depois saber com quem você vai compor e o que precisa fazer”.
A estratégia de Bolsonaro, por sua vez, parece estar traçada, com objetivos e métodos definidos. O roteiro estabelecido por Trump/Bannon vem sendo seguido à risca e começou a ficar claro com a divulgação do vídeo sobre a famosa reunião ministerial de 21/4/2020. Sua repercussão obrigou Bolsonaro a fazer aquilo que, na campanha, renegara: aproximar o Executivo do Centrão no Legislativo, que desde então vem marcando presença crescente na condução da política no País. O reiterado questionamento – à moda de Trump – de qualquer resultado das urnas que lhe possa ser desfavorável e a continuada confrontação com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) chegaram ao ponto extremo no último 7 de setembro. Refluíram, dadas as reações, mas o presidencialismo de confrontação e questionamento sobre o processo eleitoral continuam vivos e crescentes. O modelo, uma vez mais, é Trump: até hoje uma maioria de eleitores republicanos considera que as eleições foram fraudadas.
“Você ainda não viu nada” (You ain’t see nothing) – esse foi o lema de Ronald Reagan em sua campanha pela reeleição nos anos 80. Reagan era bem avaliado, e a mensagem para o eleitorado era: vocês verão, farei melhor ainda. Bolsonaro, candidato à reeleição como o Reagan de então, promete a seus eleitores mais do mesmo; ou, quem sabe, a exacerbação de seu presidencialismo de confrontação. Bastarão metade mais um dos votos válidos para entender que recebeu um “autorizo” do povo brasileiro.
Este artigo foi escrito antes do lançamento da pré-candidatura de Lula à Presidência da República (sábado, 7/5). Será bom se houver um texto básico a ser distribuído. O mais provável é que o candidato faça um de seus improvisos, alguns marcados por equívocos. Cada tropeço é imediatamente utilizado amplamente nas redes sociais que se lhe opõem, compartilhado e comentado por milhões de pessoas em tempo real.
O trabalho nas redes sociais deu vitória a Bolsonaro em 2018. O resultado das eleições de 2022 será também marcado, não deve haver dúvida, pela efetividade no seu uso. Fará bem ao País se os debates na TV puderem ter alguma influência; para tanto, deveriam discutir os problemas econômicos e sociais relevantes. O problema para tal é que, como notou Adam Przeworski, “o que os partidos propõem nas campanhas é o que acreditam que tem maior chance de levá-los à vitória e o que tem mais chance de levá-los à vitória é o que a maioria das pessoas quer (...). As plataformas eleitorais se diferenciam apenas na medida da incerteza dos partidos com relação a preferências individuais”. Segundo Marcus A. Mello, esta eleição será decidida pelo eleitor que “votará em quem não aprova para evitar quem rejeita mais”.
Em seu belo Trópicos Utópicos, Eduardo Giannetti escreveu: “O Brasil anseia por poetas videntes e profetas analíticos, por estadistas capazes de construir democrática e conscientemente, sem bravatas nem estridências, os sonhos inconscientes da Nação. O Brasil tem fome de futuro” (ênfase minha). Uma fome de futuro que, paradoxalmente, convive com nossa propensão a adiá-lo e, no caso de muitos, com o anseio pela volta a um passado idealizado. À revista Time, Lula afirmou: “Quem tiver dúvida sobre mim, olhe o que aconteceu neste país quando eu fui presidente... ao invés de perguntar o que é que eu vou fazer, olhe o que eu fiz”. Lembra Perón, na sua campanha pela volta ao poder no início dos anos 70: “Perón lo hizo – y lo hará” (Perón o fez e o fará, de novo). Não é suficiente no Brasil de hoje, dados os enormes problemas que se acumulam e que tornaram o ato de governar a partir de 2023 muito mais complexo do que há 20 anos.
Faltam cinco meses. Até lá – e depois –, é preciso assegurar os três atributos básicos de uma democracia, no dizer de Przeworski: “Eleições competitivas (e quem perde sai pacificamente); direitos liberais de expressão; e Estado de Direito”. Que, acrescento eu, requer que quem tem armas, em eleições, delas não faça uso.
*Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC.
O Estado de São Paulo