Por Fernão Lara Mesquita (foto)
Não é exatamente de glórias a história da imprensa na democracia.
Está longe de ser exata a afirmação de que o homem é um animal racional. A razão particulariza e isola e, antes de ser racional a nossa espécie é gregária. O terror atávico do bicho homem é o da solidão. Na esmagadora maioria dos casos adota esta ou aquela postura diante dos fatos não porque, ele com sua consciência, se tenha resolvido por ela, mas para ter a aprovação da tribo à qual quer continuar pertencendo. E para provar que pertence, a História confirma, não ha limite: troca Jesus por Barrabás , prega o seu salvador numa cruz, adere ao linchamento do irmão, denuncia o próprio pai ao carrasco e, com tanta determinação que, ao longo das eras, com sinistra regularidade, se tem despenhado atras de “líderes” nos mais negros precipícios, como aquelas manadas africanas.
O jornalixo põe-se em campo com a primeira disputa de poder da democracia moderna. Precede o jornalismo instituição em quase 100 anos. É tão mais presente e dominante no cenário da comédia humana quanto a mentira sobre a verdade. A intriga, as falsas acusações, os linchamentos morais, os assassinatos de personagem, a disseminação do terror … o apelo à emoção com o propósito deliberado de expulsar das disputas de poder a razão e os fatos, sempre foram a sua linguagem.
A constituição americana é o resultado do milagre histórico da momentânea superação do ego. O poder não estava em causa. George Washington era o líder inconteste destinado a ser o primeiro presidente. A inspiração do gênio de Alexander Hamilton, de extrair da jovem confraria dos “fundadores” os compromissos do segredo e do anonimato sobre as discussões que seriam travadas na sala da Convenção Constitucional da Filadélfia – tudo que de lá saísse seria apresentado como obra de todos, sem revelar jamais o teor das dissensões havidas – permitiu a criação do primeiro regime político da História deliberadamente produzido pela razão com o propósito específico de dar a cada ser humano o direito inalienável de “buscar a felicidade” como melhor lhe aprouvesse, e não como resultado indireto das vaidades, do sangue derramado e dos ódios gerados na luta pelo poder numa revolução.
Mas a guerra das Gazettes, na imediata sequência, que o Alexander Hamilton, de Ron Chernow, reconstitui em todas as suas sórdidas e atualíssimas minúcias, é o retorno triunfante da força da natureza…
Hamilton, que cometera o imperdoável pecado de ser o preferido de George Washington (que fez dele o artífice das primeiras instituições da nova república) usava a intermitente Gazette of the United States, espécie de precursor do Diário Oficial, para explicar suas ações ao público. Do ciúme que isso provocava em Thomas Jefferson, levando James Madison de arrasto, todos ministros do mesmo governo, nasceu The National Gazette, tocada pelo venenoso mercenário da pena Philip Freneau que o autor da Declaração de Independência fora buscar na França para, com a mão que escrevia o que ele ditava, destruir – nem mais, nem menos que destruir – o personagem que, lá nos seus medos, aparecia-lhe como uma ameaça ao sonho de ser presidente.
E haja lixo!
Nenhum grau de ignomínia foi banido do arsenal. A campanha foi sistemática e corrosiva. Falava em conspiração com a Inglaterra para a volta da monarquia, insinuava corrupção de que nunca houve o mais tênue sinal, invadia intimidades, intrigava esposas contra maridos. Um “depoimento” de uma amante fortuita que, em conluio com seu rufião, chantageava Hamilton, foi o tiro mais baixo. E como sempre acontece, o factóide vira fato. Ganha vida própria.
Hamilton resiste à “fritura” até que sente-se na obrigação de responder aos ataques. Tenta faze-lo num tom superior mas, encurralado, acaba descendo àquele mesmo em que vinham os ataques sucessivos. Instala-se um rio de fel em que ele vai aos poucos se afundando. E no fim, deixa-se matar num duelo/suicídio, desencantado com o regime que ajudara a criar, o mais genial e autenticamente self made dos iniciadores da terceira jornada da democracia na Terra.
O jornalismo demoraria quase 100 anos (e cinco milhões de mortos depois numa guerra civil) para mostrar a cara. Viria como remédio para salvar de si mesma uma democracia que nascera defeituosa. Joseph Pulitzer (1847-1911), reza a lenda, teria chegado a nado aos Estados Unidos. Mal falava inglês quando se atirou do navio que o trouxe da Hungria para alistar-se como mercenário no exército da União na Guerra Civil. Emprega-se, depois da guerra, no St. Louis Dispatch e, mais adiante, como correspondente em Washington do New York Sun. Torna-se dono do jornal de St. Louis e já é uma figura de destaque quando casa-se com uma mulher da elite social da cidade. Aos 36 compra o New York World e o relança como The World, que faz decolar dos 15 mil para mais de 600 mil exemplares, a maior tiragem de seu tempo.
Como Steve Jobs, mais tarde, é o primeiro a entender que “a apresentação é tudo”. É ele que inventa o jornal de títulos e manchetes garrafais. E é também o primeiro que põe seu time na rua, fazendo reportagens sobre a vida dos imigrantes, a violência policial e a corrupção que os explorava. Não sei em que momento a consciência da função institucional do seu métier se sobrepõe ao talento do empreendedor. São necessárias as duas pernas para dar cada passo. Pulitzer ensaia e erra. Descamba frequentemente para o sensacionalismo na concorrência com William Randolph Hearst que copia parte de sua receita. Cria páginas de esporte, seções para mulheres, espaço para humor, aborda crimes e desastres. Inventa o jornalismo de serviço…
Mas faz também o que ninguém ainda tinha feito na página de opinião. E em muito alto nível. Não é mais a tribuna de um dos “lados” da luta pelo poder. Proclama-se um defensor dos sem-voz; abraça decididamente a causa da democracia. É o primeiro a ver o jornalismo como um serviço público e um parteiro de reformas. Embarca totalmente na luta pelas bandeiras da Progressive Era. “Poder para o povo“; a virada antitruste; recall, referendo e iniciativa como ferramentas para quebrar a resistência do establishment…
É ele quem cria o modelo do jornalismo democrático. Aos 43 anos, cego, abandona as redações. E vaticina: “Nossa república e sua imprensa vão florescer ou decair juntas … Uma imprensa cínica, demagógica e mercenária vai produzir, com o tempo, um povo igual a ela. O poder de determinar o futuro de nossa república estará nas mãos dos jornalistas das gerações futuras”.
Ele e Sam McClure, seu contemporâneo, fundador da revista McClure’s e “inventor” do jornalismo investigativo, de grandes reportagens apuradas em profundidade e com força para desafiar com a arma da verdade robber barons do calibre de John Rockefeller, dos donos das ferrovias, de J. P. Morgan e o mais que, em conluio com as máquinas partidárias corruptas, vinha estrangulando a democracia com o garrote dos monopólios, compõem as duas frentes do jornalismo moderno e dão a pauta moral dos Estados Unidos de seu tempo.
McClure, mais um curador, que um inventor, não tinha o tino empresarial de Pulitzer. Mas era um gênio para encontrar talentos e formar equipes. Todos os melhores escritores de seu tempo dos dois lados do Atlântico – Mark Twain, Conan Doyle, Rudyard Kipling, Robert Louis Stevenson, Bram Stocker, J. Fenimore Cooper e tantos outros – lançaram-se pelas páginas da McClure’s. E seus repórteres muckrakers (“revolvedores da merda”) como Ida Tarbel, Ray Stannard Baker, Lincoln Steffens e outros, trabalhando frequentemente afinados com o presidente reformista Theodore Roosevelt, fizeram os Estados Unidos da gilded age tremer nas bases.
Os dois elevam o jornalismo a instituição da Republica. Mostram ao país, entre outros feitos, os remédios da democracia direta suíça que resgataram a democracia americana e lançaram os Estados Unidos modernos.
Mas desde o nascimento, essa faca tem dois gumes. E o primeiro é o que corta mais fundo, como se verá no capítulo de amanhã.
Vespeiro