O debate eleitoral e os desafios da governabilidade em 2023 irão muito além da transferência de R$ 400
Por Fernando Abrucio* (foto)
A decisão unânime do Supremo Tribunal Federal em favor de um programa permanente de renda básica mostra que as premissas de um Auxílio Brasil passageiro já foram superadas. A construção de uma agenda ampla e efetiva de combate à pobreza e à desigualdade social no Brasil tornou-se inescapável e não poderá ser apenas uma plataforma eleitoreira. Na verdade, essa temática será fundamental para ganhar a eleição presidencial, mas também, e com mais relevância, para governar o Brasil a partir de 2023. O país precisa de uma liderança que faça a ponte entre estes dois momentos e construa, efetivamente, um projeto de nação destinado aos mais pobres.
A percepção atual sobre a importância dos mais pobres para a nação brasileira deriva de dois fatores contraditórios entre si. De um lado, num plano mais amplo e como forma de combater a desigualdade como marca histórica do país, está a Constituição de 1988 e o espírito social derivado dela. Desde sua promulgação, estabeleceu-se um modelo lastreado em direitos a todos, beneficiando especialmente os mais vulneráveis, que pela primeira vez tinham se tornado sujeitos sociais relevantes na agenda pública. Esse contrato social deu guarida a diversos avanços durante 30 anos, melhorando vários indicadores e gerando uma esperança de mobilidade e emancipação à maior parcela da população. Tudo isso, ressalte-se, foi garantido porque houve eleições contínuas e os mais pobres foram cortejados por seu voto, e pela maior autonomia em exercê-lo.
De outro lado, porém, a crise social que começara na segunda metade da década passada foi muito aprofundada pelo bolsonarismo, por conta de uma mistura explosiva de gestão preconceituosa em relação aos mais pobres, pouco interessada na luta contra a desigualdade, com incompetente no campo da economia e das principais políticas sociais, ao que se somou uma pandemia gerida de forma desastrosa. O Brasil de Bolsonaro é a marca deste retrocesso que levou à miserabilidade e à perda de esperança de quem estava se acostumando a sonhar com um futuro melhor para si e para seus filhos, como bem mostraram os dois documentários sobre a família Braz, feitos em 2000 e 2010, uma história de quem mudava de patamar de vida na periferia de São Paulo. Vendo esses filmes hoje, parecem retratar um passado longínquo.
O governo Bolsonaro pretendeu implantar um modelo econômico e social darwinista, no qual venceriam os mais fortes e os costumes seriam a salvação perante a miséria e a desigualdade. Essa ideia não se sustentou por muito tempo, mesmo tendo causado um estrago terrível à vida dos mais pobres. O espírito da Constituição de 1988 trouxe um sopro civilizatório que levou a reações de instituições, de organizações da sociedade civil, de partidos de oposição, de setores da classe média e do empresariado. Mesmo os políticos do Centrão e alguns bolsonaristas-raiz não aguentaram ver o esgarçamento do tecido social e temem, no mínimo, pela perda de votos na próxima eleição. Por isso, aprovaram o Auxílio Brasil, contanto que junto com ele venha um bom orçamento para emendas, inclusive as secretas.
É importante frisar que os pobres não constituem um conjunto homogêneo, nem em termos de problemas, tampouco no que se refere aos valores. Existem diversos tipos de pobreza distribuídos pelo território nacional, com singularidades próprias. Isso pode ser visto na comparação entre regiões metropolitanas, áreas ribeirinhas no Norte do país e o Semiárido. Também há identidades específicas, de modo que a vinculação a um grupo religioso, a questão racial e o sentimento de pertencimento regional, entre outros, podem fazer diferença. Daí haver pessoas em situação de vulnerabilidade social pertencentes a algumas denominações evangélicas que deram apoio importante a Bolsonaro em 2018, do mesmo modo que a maior parcela dos pobres nordestinos tem uma forte identificação com a história de vida de Lula.
Tais singularidades, no entanto, perdem parte de sua importância quando há uma piora ou uma melhora geral de vida dos mais pobres. Ver os filhos estudando ou fora da escola, ter mais comida na mesa ou passar fome, perder ou obter uma moradia, estar empregado ou desempregado, além de se sentir amparado ou desamparado perante problemas de saúde são questões que unificam as pessoas das classes D e E. O atual cenário é de declínio para os mais pobres e a continuidade desse processo está gerando um descontentamento enorme. A eleição de 2022, neste sentido, será marcada pela interseção de temas sociais com o quadro econômico na definição do voto da grande maioria dos eleitores.
Entre os instrumentos para atuar contra a deterioração da vida dos mais pobres estão, evidentemente, os programas de transferência de renda, peça-chave numa sociedade tão desigual como o Brasil. Sem recursos básicos à sobrevivência, não há como usufruir plenamente de outras políticas sociais. Mas as transferências de renda precisam, antes de tudo, ser estáveis. Ao longo dos últimos dois anos, os auxílios dados pelo governo Bolsonaro foram muito instáveis, gerando um sentimento de injustiça em quem não recebeu ou recebeu em um momento e perdeu no outro. Isso para não falar da diferença de valores transferidos em 2020 e os que serão concedidos em 2022, o que significa uma sensação de uma grande perda de renda para boa parte dessas pessoas, algo que fica mais forte por causa da aceleração da inflação.
Além dessa instabilidade das transferências de renda, as ações do governo Bolsonaro pouco ou quase nada dialogaram com as outras vulnerabilidades que afetam os pobres. O bolsonarismo não entendeu ainda que a pobreza é multidimensional. Criar o Auxílio Brasil, por exemplo, e não articular esse programa com as políticas locais de assistência e de saúde é um grande erro, porque as pessoas precisam de mais do que dinheiro para lidar com suas carências. No fundo, predomina no atual governo uma visão imediatista que supõe o repasse de algum recurso, tal qual um esparadrapo que evita o pior do machucado, para assim resolver o problema da miséria que tanto incomoda quando aparece na televisão durante o jantar.
Do mesmo modo que há vários tipos de pobreza, esta precisa de múltiplas políticas. A questão central é como fazer ações governamentais estáveis, com conexão intersetorial e que se transformem em alavancas para mudança contínua na vida desses cidadãos e de seus filhos, pois se trata de um problema intergeracional. É nesta linha que se encaixa um efetivo combate à desigualdade e que se constrói um projeto nacional destinado aos mais pobres.
Juntamente com programas de transferência de renda, são necessárias alavancas para o futuro dos mais pobres. Este ponto deveria guiar o debate eleitoral em 2022 e, sobretudo, ser um elemento estratégico do próximo governo. Um bom exemplo disso está na política educacional, onde duas questões serão centrais no debate do ano que vem. A primeira refere-se à educação básica depois da pandemia. Haverá um crescimento da evasão escolar e dificuldades para que as famílias mantenham seus filhos na escola. Embora a provisão do serviço seja basicamente estadual e municipal, o governo federal é essencial neste processo, como já foi no passado recente na universalização do ensino fundamental. Desse modo, o próximo presidente terá uma enorme tarefa pela frente e apenas dizer que vai lutar contra a ideologia de gênero e defender pautas conservadoras será muito pouco para conquistar o voto de quem teme não ver a formatura de suas crianças e jovens.
Há um segundo ponto da educação que irá gerar grande discussão nas eleições: as cotas raciais no ensino superior. O uso delas por universidades federais expira no fim de 2022 e uma nova legislação precisará ser feita. O bolsonarismo é contrário a essa pauta e tem tido um discurso violento contra políticas afirmativas, o que se soma a ações específicas contra a comunidade negra - vide a gestão desastrosa do presidente da Fundação Palmares. É provável que um novo “Ele, não” apareça na campanha presidencial, vinculado não mais (só) à questão de gênero, mas à temática racial.
A questão das cotas raciais terá muita influência na agenda pública, porque os beneficiados e os que esperam se beneficiar dessa política compõem um universo muito grande dos eleitores. Mas para além desse efeito mais imediato, trata-se de estratégia consistente de combate à desigualdade social. Essa política de ação afirmativa permite que haja profissionais negros e negras em áreas nobres do mercado de trabalho onde não há hoje nenhuma diversidade racial. Além disso, esse movimento pode mudar a cor da elite brasileira, que é atualmente completamente distinta das feições típicas do homem do povo. Neste sentido, as cotas raciais são importantes no combate ao racismo, mas sua relevância é ainda maior como forma de alavancar um projeto nacional de longo prazo voltado à maioria da população do país.
O debate eleitoral e os desafios da governabilidade em 2023 irão muito além da transferência de R$ 400. Outras questões vão pautar o voto dos mais pobres e, sobretudo, definir o futuro da nação para a parcela majoritária da população. Um candidato que não tenha uma visão ampla do problema social terá muitas dificuldades para ganhar a eleição e, se vencer, certamente será um péssimo presidente.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
Valor Econômico