Jorge Béja
“Vagabunda, safada, filha da puta, cachorra…..” e muitos outros xingamentos ouviu a repórter-fotográfica “free lancer” Bete Sheila, depois de derrubada ao chão e enquanto era arrastada pelos cabelos, até ser encarcerada num porão do Forte de Copacabana por um monte de soldados do Exército, fardados e empunhando fuzis. A moça teve sua máquina fotográfica arrancada e destruída. Por que tanta covarde brutalidade? Foi porque ela e seus colegas da Imprensa estavam no Forte. E enquanto aguardavam a chegada do presidente FHC, do prefeito César Maia e suas comitivas, uma inesperada e demorada ventania fez desprender o toldo do palanque presidencial. E o toldo voou alto e foi cair no mar.
Era o início de uma noite de réveillon, a ser comemorada no Forte de Copacabana, com a presença das autoridades. Os insultos, a pancadaria e a prisão contra Bete Sheila ocorreram porque ela fotografou o palanque desabando e o toldo voando solto até cair no mar. Só por isso. Foram mais de dez soldados contra uma moça indefesa, que estava lá trabalhando para a revista Veja.
CHOROU MUITO – Cinco dias depois Bete Sheila foi até meu escritório. E antes de conversar comigo, chorou, chorou e chorou muito. Dela recebi procuração e dei entrada na Justiça Federal do Rio com ação indenizatória contra a União, que teve rápida tramitação.
Menos de seis meses após, a juíza federal Cláudia Valéria Bastos Fernandes assinou pesada sentença financeira para reparar os danos morais, físicos e materiais que Bete Sheila sofreu. Condenada, a União recorreu e o Tribunal Regional Federal-2 manteve a condenação. Apenas reduziu – não tão expressivamente –, o valor indenizatório que a juíza havia fixado. E através de Precatório, anos depois a repórter-fotográfica recebeu o valor da indenização.
DINHEIRO DO POVO – Quem pagou a indenização? Foi a União, é claro. E dinheiro da União é dinheiro do povo brasileiro. Logo, foi o povo brasileiro que suportou o pagamento da covardia brutal e inimaginável que soldados do Exército do Forte de Copacabana cometeram contra a repórter fotográfica.
Agora, décadas depois, outra monstruosidade se repete, com o mesmo Exército, na mesma Cidade Maravilhosa, também com pessoas e famílias indefesas. Mais de oitenta tiros de fuzis foram disparados pela guarnição do Exército que fazia a segurança da região da Vila Militar de Deodoro contra o carro dirigido pelo músico Evaldo dos Santos Rosa, que morreu fuzilado.
Ele, sua filha, seu filho de 7 anos, o sogro Sérgio e uma amiga da família iam para um chá de bebê quando os militares fizeram a fuzilaria. Sérgio, também atingido, continua internado. E Luciano Macedo, um catador de sucata que foi prestar socorro, também fuzilado, continua internado em estado de coma.
NOTA DE PESAR? – A começar pelo presidente da República, nenhuma nota de pesar foi expedida pelas chamadas autoridades. Os soldados serão julgados pela Justiça da sua própria corporação. Se serão punidos? Não se sabe. Eventual absolvição não será surpresa.
As teses da “legitima defesa putativa”, do “erro escusável”, do “estado de necessidade”, do “estrito cumprimento do dever legal” e tantas e tantas outras que existem, que se criam, que se inovam, que se improvisam, poderão ser levantadas e acolhidas, ainda que tenham sido mais de 80 disparos de fuzis feitos pelo grupo de soldados do Exército.
VIDA SEM PREÇO – Mas quem vai pagar mesmo é o povo brasileiro. O dinheiro do povo brasileiro. A vida não tem preço. Mas para o Direito a única forma de reparar(!) o dano é com a imposição de indenização financeira.
O advogado da família já anunciou que vai ingressar na Justiça com a ação reparatória de dano. Vencerá, é claro. A situação da União é indefensável. Mas o dinheiro sairá dos cofres da União, da mesma forma que foi o dinheiro do povo brasileiro que indenizou a repórter-fotográfica Bete Sheila.
Detalhe final: no Exército, sem haver enfrentamento, nenhum soldado atira sem receber a ordem. Nesse episódio dos 80 tiros, é importantíssimo saber quer deu a ordem.