Pedro do Coutto
Depois de uma luta intensa contra o câncer e a morte, exemplo de compromisso com a existência, o coração de José Alencar deixou de pulsar encerrando uma bela vida de sucesso, ao mesmo tempo de superação e afirmação humana. Foi um homem absolutamente autêntico, fiel a si próprio e a seus princípios, posição refletida nos pronunciamentos que, mesmo vice presidente da República, fez sobre temas econômicos, especialmente os envolvendo os juros pagos pelo governo e os cobrados pelos bancos no país.
Essa postura sobretudo ética lhe garante um lugar na história moderna do Brasil. Entretanto, sua presença nela é mais ampla. Ele se tornou, a exemplo de Tancredo Neves e Ulisses Guimarães, um dos responsáveis pela transição democrática entre o passado e o presente e também o início da construção de uma ponte para o futuro.
Sim. Porque sua presença na chapa liderada por Lula, na sucessão de 2002, praticamente eliminou a resistência que o empresariado, nacional e internacional, mantinham em relação ao candidato do PT. A resistência que o derrotou em 89, atemorizando também a classe média através de um risco (inexistente) da esquerdização do país, a partir de um retrocesso do sistema capitalista.
Tal hipótese significou um bloqueio no campo do voto. Aproximadamente 30% do eleitorado temiam que o sonho natural de subir mais um andar na escala social desaparecesse. Fenômeno político que se manteve nos pleitos de 94 e 98.
A entrada de José Alencar em cena em 2002 mudou o panorama. Um superempresário ao lado de um ex-líder sindical ao mesmo tempo causou surpresa e transferia a Lula a confiança que lhe faltava para vencer a resistência social repetida três vezes nas urnas.
Claro não foi este apenas o instrumento da mudança no campo eleitoral. Somou-se à impopularidade do presidente Fernando Henrique, cuja taxa de rejeição estava no alto da pirâmide do voto, com registro acentuado nos grupos de menor renda, os assalariados, mas sensível igualmente nos segmentos de maior poder aquisitivo.
A candidatura de José Serra, na sua primeira investida rumo ao Palácio do Planalto, foi travada simultaneamente pela imagem negativa dos tucanos e pela imagem positiva que Luis Inácio passou a alcançar como alternativa de poder avalizada pela bravura, simpatia pessoal, disposição de Lula, e o caráter capitalista que o vice emprestava à chapa popular.
Talvez sem Alencar, Lula não tivesse conseguido vencer ininterruptamente em 2002, 2006 e 2010, sucedendo-se a si próprio ao derrotar Geraldo Alckmim e elegendo sua sucessora. Lula tornou-se assim o único político do mundo a disputar cinco vezes a presidência da república. Perdeu três, venceu duas vezes e empatou o jogo assegurando a vitória de Dilma Rousseff. Os números – vale a pena lembrá-los – foram 62 a 38; 61 a 39; Dilma 56 contra 44 de Serra. Um patamar constante nas vitórias. A esperança venceu o medo, slogan síntese da jornada.
Mas eu citei a importância de José Alencar harmonizando e reunindo em torno de Lula o andar de cima e o andar de baixo. Tema do filme Metrópolis, do cineasta alemão Fritz Lang, um clássico de 1929, imagem muito usada nos excelentes artigos de Elio Gáspari, em O Globo e na Folha de São Paulo, quando aborda conflitos, aliás eternos, entre o capital e o trabalho. A imagem dos dois andares não inspira apenas Gáspari. Inspirou René Clair, como A Nós a Liberdade, e Charles Chaplin, gênio absoluto, em Tempos Modernos. Por sinal título da revista de cultura dirigida por Sartre e o filósofo Merleau Ponty, nas décadas de 40 e 50.
Alencar subiu com Lula o elevador de um andar para outro. E ele mesmo definiu o seu impulso dizendo na campanha de 2002: no mundo, o trabalho nasceu antes do capital. Por que não a harmonia entre ambos?
Fonte: Tribuna da Imprensa