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segunda-feira, abril 03, 2023

Maus e bons pastores: da justiça e do assassinato moral.




Entre a justiça a que as vítimas têm direito e o risco de assassinato moral de um inocente, bem podemos e devemos pedir luz e sabedoria. 

Por Jaime Nogueira Pinto (foto)

Character Assassination and Reputation Management – Theory and Application (Routledge, 2021), é um livro de Sergei A. Samoilenko, Martijn Icks, Jennifer Keohane e Eric Shiraev que estuda o chamado “assassinato moral”, prática que os autores definem como a destruição deliberada da reputação ou credibilidade de uma pessoa ou de um grupo.

O assassinato moral tem de ser deliberado e tem de concentrar-se numa percepção que se pretenda impor à opinião pública. O alvo é a imagem do outro, da sua pessoa, na avaliação e percepção da comunidade, mas pode também ser a imagem e a reputação de um colectivo – uma categoria política ou social, um grupo étnico ou religioso.

Para os autores, os quatro elementos essenciais do processo são o alvo, o meio, o público e o contexto.

Para o assassino, o assassinato moral tem sobre o assassinato físico a vantagem de poder ser anónimo, de só dificilmente ser investigável e de ficar quase sempre impune. Pode praticar-se em vários graus, meios e escalões: na conversa social, de sala ou de mesa de café, em que, num exercício retórico de confidência, se calunia alguém – um adversário político, um rival social ou sentimental, um concorrente profissional; nas redes sociais, sob um nome de guerra; ou até nos grandes media, em campanhas discretamente encomendadas pelos poderosos deste mundo.

A receita é antiga e o espírito e a prática são os de sempre; mas a tecnologia, o meio através do qual o agente ataca o alvo, muda. Com a imprensa, a rádio, a multiplicidade e rapidez da comunicação e o acesso global e anónimo aos seus meios, as sociedades contemporâneas oferecem novas condições para esta forma de eliminação de pessoas ou grupos. No século XX, o assassinato moral foi praticado não só contra pessoas, mas contra comunidades étnicas e religiosas, contra grupos sociais, contra movimentos ou partidos políticos. E até contra produtos e empresas.

Na Antiguidade

Cícero, advogado, orador, pensador político e político, ficou famoso pelos seus talentos polémicos. Nasceu rico e casou rico, foi questor em 75 AC, pretor em 66 e cônsul em 63. Contra Catilina e os seus partidários, não hesitou em recorrer às artes da agressão retórica, conseguindo que Catilina fosse considerado um hostis de Roma, o equivalente ao inimigo estrangeiro, e que fosse tratado como tal. Conseguiu também a execução sem julgamento de alguns cúmplices do conspirador. Mas estas suas artes retóricas viraram-se contra ele quando apoiou o assassinato de César e atacou Marco António. No final, Marco António, triúnviro em ascensão depois da morte de César, enfurecido com os ataques de Cícero a ele e à mulher, Fulvia, mandou matá-lo: um legionário cortou-lhe a cabeça quando ele a pôs de fora da liteira.

A palavra e a retórica, de que dependia a fama, contavam muito na Roma republicana; quem detinha a palavra tinha o poder de fazer e desfazer reputações. Suetónio, por exemplo, retrata como autênticos monstros quase todos Os Doze Césares. Mas não será o seu relato um subproduto do ódio da classe senatorial aos césares, que lhe tinham tirado privilégios? Suetónio vinha, por família, da classe dos equites, ligada à classe senatorial, e poderia aqui duvidar-se da sua independência: havia que fazer a “história do historiador”, como sugeria Marx.

Na sua crónica, Suetónio repetia anedotas e maledicências sobre os primeiros imperadores, acrescentando-lhes contornos ainda mais negros – a pedofilia de Tibério, em Capri, as paranoias de Calígula, a imbecilidade de Cláudio, a monstruosidade narcísica e megalómana de Nero. Verdade? Mentira? O historiador escrevia já no tempo dos Antoninos e fora secretário do “bom” imperador Adriano (o das Memórias de Margueritte Yourcenar): teria ele, deliberadamente, tornado os doze césares moral e humanamente repugnantes biografando-os sem aparentemente exprimir juízos de valor, ou seja, através de uma falsa neutralidade?

Se os pagãos eram assim, a verdade é que os cristãos também não eram muito melhores. Depois de perseguidos pelos imperadores, de Nero a Diocleciano e a Licínio, e quando, passada a sua libertação por Constantino e já no tempo de Teodósio, se acharam numa posição de poder, passaram a ser eles os perseguidores. Na Idade Média, cristãos como Vincent de Beauvoir, no Speculum historiale, pintaram Maomé como um aventureiro, um anti-Cristo de segunda classe, um homem de origens plebeias que seduzira uma viúva rica e decidira fazer-se profeta, por pura ambição.

São também tremendas as retóricas de assassinato moral no século XVI, a partir da Reforma e das guerras religiosas; retóricas, de que humanistas críticos, como Erasmo ou Thomas More, são as raras excepções.

Tempos Modernos

Modernamente, refinou-se a consciência do alcance e eficácia da calúnia como forma de neutralizar alguém, atingindo-o na reputação, matando-o moralmente. Assim, em 1775, Simon Linguet publicou uma Théorie du Libelle ou l’art de calomnier avec fruit:

“Um libelo lançado a tempo e a propósito, pode causar uma revolução, mudar e dominar os espíritos e levar um homem à perdição, sem apelo ou remissão, o que traz grandes vantagens.”

Já Francis Bacon, no século anterior, sublinhava a força da calúnia, escrevendo: “Caluniai, caluniai. Fica sempre alguma coisa”.

A frase foi repetida por Beaumarchais e Voltaire. Voltaire, conhecendo bem o ofício, também dizia que os caluniadores eram como o fogo que, mesmo quando a madeira era verde e não podia queimá-la, não deixava de a chamuscar.

Em França, em 1769, no auge das polémicas entre homens e mulheres de letras, em que fervilhava a calúnia, o autor de Traité sur la Calomnie escrevia que o caluniador que manchava a honra e a reputação de alguém merecia menos perdão que “o bandido que tirava a vida à sua vítima”; a calúnia era “maior mal do que o punhal de um assassino”, porque atingir a honra e o bom nome de alguém era decretar a sua morte civil ou social.

Na França do século XVIII, com a expansão da filosofia e da leitura, com os jornais, com as academias e uma sociedade de Corte onde o favor do Rei – e dos seus ministros, favoritos e cortesãos – era decisivo para a ascensão ou para a ruína social, a calúnia era uma arma terrível. E a ideia de que, da difamação, sempre ficava alguma coisa era até explicitamente atestada na Encyclopedie no verbete “cicatriz”, em que o autor comparava as marcas deixadas na carne pelas feridas aos “efeitos da calúnia”.

De perseguidores a perseguidos

Se de perseguidos, os cristãos tinham passado a perseguidores, voltariam, modernamente, a perseguidos. Durante a Revolução Francesa, no Terror, foram mortos aos milhares. Na Vendeia houve um quase genocídio, promovido em nome do Progresso e das Luzes pelas colunas infernais do general Turreau de Liguières. A Esquerda ganhou aí o costume de matar bispos e padres, o que faria em modesta quantidade na Comuna de Paris, em 1871, e por cá, no 5 de Outubro de 1910; mas em Espanha fá-lo-ia em grande escala, em 1936, na Guerra Civil, a maior perseguição desde o tempo de Diocleciano. Para já não falar da Rússia, do México, da China, do Vietname e do Cambodja do século XX, sob o comunismo e os comunistas.

Hoje a perseguição acontece sobretudo na Ásia e na África Subsaariana. Segundo a Open Doors World Watch List, há 360 milhões de cristãos a viver em países em que são perseguidos, ou seja, 1 em cada 7 no mundo, 1 em cada 5 em África, 2 em cada 5 na Ásia; e até 1 em cada 15 na América Latina. Sempre segundo os números da Open Doors, em 2022, foram mortos 5.600 cristãos por razões da sua Fé e mais de 2100 igrejas foram atacadas ou encerradas.

Na Europa, desde o fim do comunismo que os cristãos não são mortos fisicamente. Mas são, todos os dias, objecto de assassinato moral.

Por uma espécie de correcção histórica, parece estar pendente um qualquer ajuste de contas contra aquilo que hoje, na Europa Ocidental, é tratado como se de uma minoria obsoleta se tratasse, com valores que contrastam ou colidem com o que é apresentado como cultural, política e socialmente correcto.

E aqui voltamos ao assassinato moral.

Os casos de pedofilia na Igreja – pecados e crimes da mais repugnante transgressão e subversão dos valores de Cristo, cometidos por alguns sacerdotes e ocultados por outros – desencadearam contra a Igreja como um todo uma grande ofensiva. A enormidade do crime, a traição da confiança, a debilidade das vítimas, a ocultação, a ausência de medidas ou a aplicação de medidas inadequadas, legitimam a indignação e o choque. Mas, nalgumas situações, passou-se ao massacre moral generalizado, misturando casos certos e sérios com meras suspeitas e acusando e caluniando indiscriminadamente. Em parte, por imbecilidade e ignorância mediática, mas também por uma raiva e um ódio à religião católica que, em Portugal, vem de longe, vai-se ao ponto de, em relação a casos concretos, se acusarem e caluniarem pessoas com base em denúncias que, no juízo criminal, teriam um não provimento imediato.

O rigor jurídico, a investigação rigorosa, o princípio de presunção de inocência, a prudência pelos danos morais emergentes, exigidos em relação a outras ou às mesmas categorias de que beneficiaram e beneficiam outros suspeitos mais laicos e republicanos noutros casos célebres, parecem aqui desaparecer. Aqui, aparentemente, os suspeitos passam quase imediatamente a réus, e daí logo a culpados e criminosos, aparecendo bruscamente a Igreja, aos olhos dos desprevenidos e inocentes, como uma associação de pedófilos malfeitores e respectivos encobridores.

O mal e o bem

Os casos reais de pedofilia e abuso na Igreja são situações no limite do humano, em que o Mal encarna e toma conta daqueles que, entre todos, deviam servir o Bem; e esse Mal encarniça-se contra os mais inocentes, os mais vulneráveis, atraiçoando a sua entrega e confiança e arruinando-lhes a vida de um modo quase irremediável. É justa a indignação, a raiva, a cólera dos homens e de Deus. Não podemos deixar de pensar nas vítimas que sobreviveram a este horror, na sua coragem de, em nome de todos os que se calaram ou foram calados, terem exposto os seus casos e, à custa do seu pudor, destaparem esta ferida de todos nós, os que somos Igreja e sobre quem cai a mancha, a vergonha, o remorso pelo que alguns consagrados fizeram.

Mas, exactamente por isto, pela enormidade e dimensão do pecado e do crime, há também que ver o horror de os imputar a um inocente. Não é fácil, e entre a justiça a que as vítimas têm direito e o risco do assassinato moral de um inocente, bem podemos e devemos pedir luz e sabedoria.

O Cardeal O’Malley, arcebispo de Boston e Presidente da Comissão Pontifícia para a Protecção de Menores, equacionou bem a questão da responsabilização pela culpa real e pela culpa por negligência, ao evocar, a propósito, o testemunho do Papa Bento XVI. No seu encontro com as vítimas, ao expor a sua angústia por não ter podido prevenir e evitar tais abusos, na qualidade de alguém que teve grandes responsabilidades na Igreja católica, dizia Bento XVI:

“Uma vez mais, só posso expressar a todas as vítimas de abuso sexual a minha profunda vergonha, o meu grande pesar e o meu sincero pedido de perdão”.

E nós, reconhecendo o Mal e o infinito sofrimento das vítimas – e a sua coragem em vencer interditos por amor à justiça e à protecção de outros – não podemos deixar também de lembrar que, por cada um destes degenerados e maus pastores, há, todos os dias, muitos mais que se dedicam às suas comunidades, ao serviço dos seus irmãos, com heroísmo, abnegação e risco; não podemos esquecer os padres, os missionários, as irmãs da caridade, os voluntários católicos que ajudam a fazer um mundo melhor; nem ignorar o esforço radical – ainda que nem sempre devidamente divulgado – de reparação e prevenção que está a ser feito na Igreja, através de medidas concretas e de mudanças estruturais.

E, pela gravidade do crime e das consequências da acusação de um inocente, não podemos também pactuar com listas de suspeitos e levianas condenações públicas.

Observador (PT)

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