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quinta-feira, setembro 29, 2022

O sofrimento e a mentira




O que me surpreendeu foi a reação de alguma gente no Ocidente e particularmente em Portugal. O sofrimento da população ucraniana é como se não existisse, como se fosse fruto da ação dos seus líderes. 

Por Paulo Tunhas (foto)

Há um certo número de condições necessárias para que um juízo político tenha lugar e, se essas condições não são satisfeitas, o juízo político não passa de uma fantasmagoria. Não pretendo aqui fazer a lista de tais condições, apenas notar duas que me parecem particularmente salientes: o sentimento de compaixão para com o sofrimento alheio e a sensibilidade bastante para distinguir a verdade da mentira.

São apenas duas das condições do juízo político, como acabei de dizer, mas são condições fundamentais. A insensibilidade ao sofrimento alheio e a incapacidade de distinguir a verdade da mentira designam uma patologia do comportamento político. Quem é incapaz de proceder a esse duplo reconhecimento sofre indiscutivelmente de um problema de cognição política.

Estas condições são, num certo sentido, pré-políticas. Referem-se a um fundo humano que precede o juízo político propriamente dito. A indiferença para com o sofrimento alheio e a incapacidade de distinguir o verdadeiro e o falso verificam-se na vida comum de múltiplas maneiras. Mas, quando transportadas para a vida política, ganham obviamente uma dimensão nova. Quanto mais não seja, porque o sofrimento passa a encontrar-se exposto aos olhos de todos e a mentira salta aos olhos com uma evidência irrecusável.

Isto que acabo de dizer vale para a vida política em geral. Mas vale certamente com mais força para os casos de agressão em grande escala, sobre os quais dispomos de abundante e constante informação. Vale nomeadamente para a invasão russa da Ucrânia e para tudo o que se lhe seguiu.

Houve certamente muitas coisas que me surpreenderam desde o início da invasão. A maneira como ela escapava a hábitos que dávamos por adquiridos. A brutalidade russa. A tentativa de destruição sistemática de um país a mando de Putin. A extraordinária tenacidade dos ucranianos em defenderem a sua pátria e o exemplo de coragem e perseverança em que Zelensky, desde o primeiro momento, se tornou. O sucesso na resistência ao invasor. E por aí adiante.

Mas, confesso, o que, num certo sentido, mais me surpreendeu, foi a reacção de vária gente a tudo isso. Não a reacção, sublinho, de muitos russos. Que seria de esperar de uma grossa fatia de um povo que não conheceu, ao longo da sua existência, nenhuma contribuição para a história da liberdade que é constitutiva do chamado Ocidente? E que não conheceu nunca, permito-me acrescentar, qualquer tradição filosófica digna desse nome, que, desde os Gregos, foi constitutiva da experiência ocidental da liberdade? A indiferença para com o sofrimento alheio e a incapacidade de distinguir a verdade da falsidade encontram-se inscritas nesse modo multisecular de ser, no conjunto das significações imaginárias sociais, como diria um filósofo, que fazem parte daquela sociedade.

O que me surpreendeu realmente foi a reacção de alguma gente no Ocidente e particularmente em Portugal. O sofrimento da população ucraniana é como se não existisse ou como se fosse o fruto da acção dos seus líderes, ou do Ocidente através deles, sendo a invasão russa a consequência estrita dessa mesma acção. Não ver o sofrimento que toda a gente vê, não ver as suas causas, que estão dispostas ao olhar de todos, releva de uma patologia moral magnificada em patologia política.

O mesmo se dirá da incapacidade em reconhecer a colossal e sistemática mentira que salta aos olhos em tudo o que vem da Rússia de Putin, desde o argumentário para a invasão e do nome – “operação militar especial” – escolhido para a designar até aos recentes referendos nas zonas ocupadas pelos russos, passando por tudo o que ocorreu entre uma coisa e outra. Não se medita suficientemente sobre a corrupção do espírito que preside a essa cegueira face à mentira. Volto ao que disse atrás: há uma patologia moral que se desdobra numa patologia política.

Estamos muito longe do conflito de argumentos que é constitutivo da vida ética e política. Só na aparência se pode julgar que o que temos face a nós prolonga tal conflito. Na verdade, trata-se da negação do fundo racional comum, por mais aproximativo que seja, que subjaz a esse conflito. O poder de não ver – a alucinação negativa que nos impede de ver o copo que está, ao olhar de todos, pousado sobre a mesa – releva de uma patologia singular para a qual não parece haver cura possível.

A incapacidade de distinguir a verdade da falsidade, no caso em que a distinção não oferece o mínimo vestígio de dúvida, é talvez o exemplo por excelência de uma má-fé que tomou conta do ser na sua integralidade. Face a um tal grau de má-fé, confinando com a loucura, toda a conversa se torna impossível. Resta a repugnância que se sente por quem se coloca decididamente fora do patamar da decência humana.

Observador (PT)

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