As eleições de 2022 parecem ter dissolvido a distância da comunicação mediada em duas telas.
Pouca gente havia percebido essa tendência na disputa de quatro anos atrás; hoje é uma noção difundida.
Essa dissolução permite ao espectador olhar para a TV e imaginar estar ainda conectado a uma rede social e vice-versa. A rede moldou a forma como os protagonistas se comportam no que antes chamávamos de primeira tela. A fusão tem como base um discurso e uma estética.
Por isso quem assistiu ao debate da TV Globo, uma espécie de último reduto de uma certa liturgia do jornalismo e da impessoalidade, imaginou estar diante de um bate-boca de rede social.
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Todos ali estavam a postos para viralizar, com frases-feitas e respostas espertas, porém ensaiadas, para compartilhar em suas páginas tão logo terminasse o enfrentamento.
A lógica binária que guia as redes sociais impedia a observação de nuances num confronto que tinha de saída sete candidatos; não é de se estranhar que o mais falado, um falso padre que parece ter estudado ciência política na universidade do Facebook (como muitos da nossa família, aliás), seja o que tenha menos chances de se eleger. Não é isso o que acontece na segunda tela povoada de avatares e jogadores dispostos a fazer troça das regras do jogo?
Uma eleição nunca é o momento em que deixamos os espaços de lazer e entretenimento para discutir a sério, como num exame de consciência, nossos dilemas mais profundos. Suas fronteiras se embrenham e se confundem com o hit de cada época –e não só na elaboração de jingles.
Saudosos dos velhos debates televisivos vão se recordar dos momentos em que Leonel Brizola e Paulo Maluf se digladiavam, sem freios na língua, diante de plateias animadas no tempo em que imperavam os programas de auditório e luta livre na TV aberta.
No futuro próximos os eleitores vão se lembrar dos tempos em que candidatos se comportavam em 2022 como tuiteiros, levavam frases curtas de até 280 caracteres para o o estúdio/palanque e passavam parte do debate acionando os donos do canal para remoção de conteúdo indesejado. A função de mediador do que é fake e o que não é, do que é ataque legítimo ou golpe abaixo da cintura, ficou como os apresentadores do encontro. William Bonner não era ali o jornalista responsável pelo debate, mas uma figura de autoridade localizada entre o bedel de colégio e o suporte técnico de um aplicativo sob ataque.
O saldo é uma multidão de vencedores e derrotados –basta saber por quais bolhas trafegam as frases cortadas e editadas como a última palavra dita sobre uma verdade definitiva e a avaliação muda conforme a plateia.
Favorito para se eleger, o ex-presidente Lula (PT) saiu do debate com respostas assertivas acerca de debates sobre cotas, num confronto com o candidato Luiz Felipe D'Avila, do Partido Novo, e sobre a hipocrisia de seu principal adversário, que o acusa de fazer parte de uma quadrilha mesmo alimentando outra à base de rachadinhas e suspeitas em compra de vacina e liberação de verbas para Educação. Jogava pelo empate e conseguiu o resultado. Se não ganhou nem um voto com a estratégia, também não perdeu.
Do outro lado lado, Jair Bolsonaro (PL) poderá ostentar ao seu eleitor-raiz que não perdeu a capacidade de xingar e ofender quem mais despreza(m). É isso o que parece animar cerca de 30% do eleitorado. Para eles o capitão não precisa sequer contar a parte em que teve a chance de fazer uma pergunta para o petista e desviou, deixando ao seu preposto disfarçado de padre o trabalho sujo.
Foi o que rendeu o momento de maior tensão do encontro, quando Padre Kelmon (PDT) pensou estar em uma eleição na Nicarágua e foi chamado pelo petista de “impostor” e “candidato laranja”. Como fez Bolsonaro nas brechas do sistema democrático, Kelman se aproveitou de uma brecha nas regras do debate para tripudiá-las. Estava lá para isso.
Ficou à cargo das mulheres da disputa colocar os bebezões em seu lugar. Como quando Soraya Thronicke (União Brasil) perguntou ao falso padre se ele não temia ir para o inferno.
O debate em torno do purgatório nacional se transformava naquele momento numa simulação de Julgamento Final, no qual todos diziam ter procuração divina para julgar a alma alheia e dizer se ela merecia ou não o Reino dos Justos.
A profusão de interações no que antes estava delimitado a uma segunda tela mostra que estamos todos presos no mesmo metaverso, e lá só se quer saber quem bateu mais e quem soube devolver no mesmo tom.
Propostas mesmo ficaram para o além. Morreram asfixiadas.
No meio da confusão, Ciro Gomes (PDT) ficou sozinho com suas reinações, todas já conhecidas, como tem sido desde o início da campanha, atirando e pulando de um lado para o outro numa festa estranha com gente esquisita em que todos estavam lá para pular e atirar. Saiu do debate como caminha para sair das urnas: apagado.
Madrugada adentro, o eleitor já não sabia se estava diante de um programa de TV ou de uma discussão interminável no WhatsApp –o que pode significar um esgotamento ou um traço definitivo de um velho novo formado. Bem-vindo ao mundo novo.
Como não há nada que não possa piorar, não erraria quem concluísse que as eleições de 2022 abriram apenas uma porteira para males piores com seus cosplays de onça, palhaço e padre de festa junina. O elenco do próximo programa promete colocar no mesmo debate um cosplay de viking, outro de Mestre dos Magos, um representante das Cruzadas e uma freira fumante armada com fuzil.
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