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sábado, maio 28, 2022

O tiro que pode perturbar as eleições




Turbulência que se teme em outubro não vem da ação das Forças Armadas

Por Maria Cristina Fernandes (foto)

A turbulência que se teme nas eleições não vem da ação das Forças Armadas, mas de sua omissão. No roteiro traçado por um ex-ministro da Defesa, ainda hoje um dos principais interlocutores civis no meio militar, uma eventual derrota do presidente Jair Bolsonaro levaria seus apoiadores mais exaltados a uma tentativa de invasão de prédios públicos, notadamente o Tribunal Superior Eleitoral, que divulga o resultado oficial da disputa.

O governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, face ao risco, pediria ao presidente da República uma Operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). O comandante em chefe a recusaria, por óbvio, principal beneficiário que é de uma baderna que reside, por enquanto, no campo da imaginação.

Como qualquer um dos Três Poderes pode conceder a GLO, o governador apelaria, então, à presidente do Supremo Tribunal Federal, cujo prédio também é alvo. Não falta quem, além das estátuas da liberdade em frente às lojas da Havan, queira dar ao Brasil uma réplica do 06/01/2021.

A ministra Rosa Weber não hesitaria em concedê-la, mas o comandante em chefe pode resistir para evitar que, a exemplo do que aconteceu na invasão do Capitólio, em Washington, a tropa atue na contenção dos baderneiros.

A sucessão de autoridades americanas que já reiterou confiança no sistema de votação brasileiro faz com que este roteiro se mantenha, por enquanto, no campo da ficção. Só a ameaça de baderna permanece crível.

Mas que grupo teria hoje organização e tática capazes de perturbar a ordem pública? Os black blocs já almejam essa condição, mas só enquanto o desemprego estava no piso de 4% e a inflação anual rodava na casa dos 5%, nos idos de 2013. Depois que o presidente Jair Bolsonaro tomou o poder e levou o gás de cozinha a R$ 130, perderam o interesse.

Chegaram a dar as caras no 1º de Maio na França, logo depois do segundo turno que reelegeu o presidente Emmanuel Macron. Quebraram vidraças de lojas do McDonald’s, de bancos, companhias de seguro e imobiliárias. Foram contidos pela polícia, e não se falou mais nisso.

Bruno Paes Manso, que divide com Esther Solano e Willian Novaes a autoria de “Mascarados - a verdadeira história dos adeptos da tática black bloc” (Geração Editorial, 2014), conta que o movimento, surgido na Alemanha nos anos 1970 com um discurso libertário e anticapitalista, perdeu tanta força no Brasil que findou na invasão de um canil em São Roque.

Já foi outro agrupamento, este mais à direita, o Movimento Brasil Livre, que liderou as manifestações que resultaram no impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, e chegou a formar bancada no Congresso com cinco deputados, dois senadores e deputados estaduais como Arthur do Val (União Brasil), o “Mamãe Falei”, que acabaria cassado depois de vídeo em que disse que as ucranianas eram “fáceis porque pobres”.

Paes Manso não tem dúvida de que, se existe alguma arregimentação civil contra as eleições, esta passa pelos associados nos clubes de tiro, os CACs (Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador). São eles, diz, que partilham a mesma crença de Bolsonaro de que povo livre é povo armado.

O retrospecto dos episódios de perturbação da ordem ao longo deste governo confirma o prumo do pesquisador. A começar pelo próprio governador em cujo colo os perturbadores podem explodir. Quando o acampamento da ativista Sara Giromini, conhecida como Sara Winter, líder dos “300 do Brasil”, movimento que se propunha a invadir o Congresso, foi desmontado em junho de 2020, um de seus integrantes, o fazendeiro goiano André Luiz Paula Costa, divulgou um vídeo de ameaças a Ibaneis. Em depoimento à Delegacia de Repressão a Crimes Cibernéticos da Polícia Civil do Distrito Federal, ele declarou a posse de seis armas legitimadas pelo registro de atirador.

Em novembro daquele ano, o engenheiro paranaense de 58 anos Luiz Antonio Iurkiewiecz lançou um Renault Duster branco contra a sede do Ministério da Justiça pensando que ficava ali a sede do Supremo Tribunal Federal. Como era madrugada, ele abandonou o carro e só foi preso no dia seguinte num hotel com uma espingarda calibre 12. Réu por crime contra a segurança nacional, depois de confessar ter agido por “inconformismo político” contra o que considerava uma “ditadura do Judiciário”. Iurkiewiecz também tinha registro como CAC.

Com o início da campanha presidencial, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva tornou-se o alvo preferencial. Em março deste ano, um homem divulgou vídeo praticando tiro ao alvo na cidade de Gravatal (SC) com narração: “Bora petezada de Gravatal... olha ali um petista passando”. Manteve a imagem do rosto borrada, recurso ao qual a polícia civil do estado atribui as dificuldades de identificá-lo.

Nem sempre a identificação gera punições. No ano passado, José Sabatini, empresário de Artur Nogueira, no interior de São Paulo, divulgou vídeo em que, depois de praticar tiro ao alvo enrolado numa bandeira do Brasil, faz uma ameaça ao ex-presidente: “Se você não devolver os R$ 84 bilhões que você roubou do fundo de pensão dos trabalhadores, você vai ter problema”. “Não tenta transformar meu país numa Venezuela. Eu vou derramar meu sangue, mas vou lutar pelo meu país. A minha parte eu vou fazer.”

A polícia civil encontrou um revólver calibre 38 e uma espingarda calibre 12 na casa do empresário. O PT tentou uma queixa-crime, mas o Ministério Público rejeitou a denúncia sob o argumento de que o empresário não tinha consciência de que a acusação feita contra o ex-presidente era falsa. A única punição foi uma liminar, da justiça de primeira instância de São Bernardo do Campo, que proíbe o compartilhamento do vídeo sob pena de multa diária de até R$ 100 mil.

Autor de “Armas de fogo: gatilho da violência no Brasil” (Telha, 2021) e pesquisador do Instituto Sou da Paz, Bruno Langiani acompanha o associativismo desses clubes de tiro nos últimos anos e não tem dúvida em afirmar que 95% são bolsonaristas fervorosos.

Identifica o crescimento desses grupos a partir de maio de 2019, quando uma portaria presidencial escancarou a compra de armas. Até então, o Estatuto do Desarmamento previa que o porte seria concedido aos maiores de 25 anos que comprovassem capacidade técnica e psicológica para uso de arma de fogo, não tivessem antecedentes criminais nem respondessem a processos criminais. A partir deste decreto (9.785), associados de clubes de tiro, advogados, caminhoneiros e residentes em áreas rurais ficaram dispensados de comprovar esses critérios.

O porte de armas explodiu. Dados obtidos por Langiani em novembro de 2021, com base na Lei de Acesso à Informação, dão conta de 794 mil armas em mãos de CACs, o que ultrapassa, com folga, a soma de armas em mãos de policiais militares (583.498) e civis (172.131) no país.

Paralelamente, houve um crescimento exponencial dos clubes de tiro. De julho de 2019 até novembro de 2021, o número de CPFs inscritos nessas unidades, segundo os dados compilados por Langiani, cresceu 194%.

Partes do decreto acabariam suspensas pelo Supremo Tribunal Federal, mas sua vigência, ao longo de quase dois anos, lastreou essa expansão. O caminho mais fácil para o porte de arma, diz Langiani, passou a ser a inscrição num clube de tiro.

Com a decisão do Supremo, a saída dos CACs foi garantir a alteração legislativa. O projeto passou na Câmara dos Deputados, mas esbarrou no Senado. O freio do Supremo funcionou para dar ainda mais aderência entre os propósitos dos clubes de tiro e aqueles do presidente Jair Bolsonaro. Tanto uns quanto o outro têm o STF por algoz.

Politicamente, a associação mais representativa dos CACs é o Movimento Pró-Armas. Seu principal dirigente, Marcos Pollon, advogado do Mato Grosso do Sul, já esteve com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e com o presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Casa, Davi Alcolumbre, e faz lives com o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), o filho do presidente mais próximo da indústria de armas no Brasil e no exterior.

Esse grupo, na avaliação de Langiani, substituiu o Viva Brasil, de Bene Barbosa, que foi muito ativo à época do Estatuto do Desarmamento, mas hoje estaria mais empenhado na expansão dos seus negócios no comércio de armas do que na articulação política do tema.

A liberação desenfreada já preocupa até setores que cultivam afinidades com o presidente da República, como policiais, cujos carros têm blindagens que já não os protegem de alguns calibres liberados. Além da quantidade de armas em circulação, preocupa ainda a apreensão de armas revendidas por CACs para as milícias e para o crime organizado.

O Pró-Armas é o que há de mais parecido, no Brasil, com a NRA, sigla em inglês da poderosa Associação Nacional do Rifle, dos Estados Unidos, responsável por barrar todas as iniciativas legislativas de controle da posse e do porte de armas naquele país.

Assim como não foi a NRA que liderou a invasão do Capitólio, Langiani tampouco acredita que o Pró-Armas tenha disciplina ou treinamento para uma ação organizada contra instituições como o TSE ou o STF nas eleições. Pelo menos não atuaram dessa forma no Sete de Setembro. Até fizeram convocações e caravanas, mas sem treinamento ou mobilização específicos.

Pelo calibre do armamento liberado e pelo perfil daqueles que hoje têm acesso a arsenais que podem chegar a 60 armas, Langiani diz que não é preciso um grande número de pessoas para perturbar a ordem. Estão tão armados e radicalizados que 1% deles (7 mil pessoas), devidamente insuflado pelo presidente da República, já formam um contingente capaz de fazer um tremendo estrago.

Valor Econômico

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