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segunda-feira, janeiro 03, 2022

Jair Bolsonaro e os evangélicos

 



Na medida em que a influência de Bolsonaro sobre a religião se amplia, a sua autoridade moral no governo entra em declínio, até mesmo por estimular antagonismos nunca antes existentes entre as crenças. 

Por Aloísio de Toledo César* (foto)

Não por força de suas históricas raízes católicas, mas antes pela conduta polêmica e mesmo desastrosa do presidente Jair Bolsonaro, tem-se observado no Brasil quase um preconceito ou uma reserva em relação aos evangélicos. Será lastimável se isso vier a prevalecer, porque violenta o sentimento de liberdade religiosa característico de nosso país.

Desde nossa primeira Constituição, em 1924, em seu artigo 102, via-se a fé religiosa declarada: “O Imperador, antes de ser aclamado, prestará nas mãos do presidente do Senado, reunidas as duas Câmaras, o seguinte juramento: Juro manter a Religião Cathólica Apostólica Romana, a integridade e indivisibilidade do Império; observar e fazer observar a Constituição Política da Nação Brazileira e mais Leis do Império, e prover ao bem geral do Brazil, quanto em mim couber”.

Aquela Constituição dizia, também, que “a pessoa do Imperador é inviolável, e sagrada: Elle não sujeito a responsabilidade alguma. Os seus títulos são Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brazil e tem o tratamento de Majestade Imperial”.

A despeito dessa adoção imperial da religião católica, o artigo 179, V, da nossa primeira Constituição teve o cuidado de respeitar o sentimento religioso: “Ninguém pode ser perseguido por motivo de religião, uma vez que respeite a do Estado, e não ofenda a moral pública”.

Mesmo em seu isolamento, relativamente à Europa, o Brasil sentiu os efeitos da reforma protestante de Martinho Lutero e passou a conviver com outras doutrinas cristãs. Tantas foram as seitas evangélicas surgidas nos últimos tempos, por razões diversas, que acabou chamando a atenção de número expressivo de brasileiros, sobretudo pelo fato de vários entre seus pastores induzirem os crentes ao pagamento de um dízimo mensal, chegando a até um décimo do salário.

Isso resultou no enriquecimento de espertalhões e tisnou em parte a imagem dessa fé cristã, da qual o presidente Jair Bolsonaro é ferrenho defensor. Claro que o respeito pela religiosidade dos evangélicos permanece e merece permanecer, mas a inclusão recente de um componente político novo atua de forma diversa.

A plenos pulmões, o presidente da República proclama que pretende formar um Supremo Tribunal Federal (STF) povoado por evangélicos, e já conseguiu nomear dois deles, num universo de 11, prometendo incluir mais três, se lograr a reeleição.

Ora, vincular a escolha de ministros a um sentimento religioso específico equivale a tripudiar sobre as carreiras jurídicas e a desdenhar quanto à aptidão para o exercício da atividade de julgar. Ao invés de escolher ministros por sua competência e credibilidade, ele passou a vincular a escolha pela premissa de ser evangélico, fato absurdo, porque equivale a excluir como inaptos os católicos, judeus, muçulmanos e adeptos das crenças de origem africana.

Sem dúvida, essa conduta desaforada alcançou a imagem dos evangélicos, que não têm culpa nenhuma pela preferência de Bolsonaro, e provavelmente muitos deles talvez nem concordem com critério tão arbitrário. A rigor, a tática do presidente divide as águas, como se evangélicos e os outros religiosos estivessem em discordância ou antagonismo, fato que parece nunca ter ocorrido anteriormente no Brasil.

Os ministros que já compunham o Supremo Tribunal Federam antes de Bolsonaro devem estar rindo, por saberem que o exercício da atividade profissional de julgar exige capacitação jurídica específica, jamais uma preferência religiosa merecedora de respeito, mas insuficiente para avalizar merecimento. Desde sua criação, o Supremo Tribunal Federal admitiu em seus quadros o acesso de juristas, independentemente de serem religiosos ou não. Isso agora mudou.

Na medida em que a influência de Bolsonaro sobre a religião se amplia, a sua autoridade moral no governo entra em declínio, até mesmo por estimular antagonismos nunca antes existentes entre as crenças. Os judeus, que tanto sofrimento experimentaram ao longo dos séculos, os muçulmanos e os católicos, agora considerados diferentes dos evangélicos, talvez se sintam diminuídos.

Não pode ser considerada saudável ou edificante a pretensão de exaltar ou diminuir politicamente sentimentos religiosos, que por sua própria natureza merecem simplesmente ser respeitados. Em verdade, a vocação exaltada do presidente Jair Bolsonaro na escolha exclusiva de evangélicos para o Supremo Tribunal Federal atua contra ele próprio e, embora não desmereça os partidários dessa religião, coloca o carimbo de inaptos naqueles que professam outra crença.

No fim das contas, o presidente da República se coloca contra a maioria, isso quando nos aproximamos do ano eleitoral e ele sonha em ser reeleito. Os votos dos evangélicos, ou de outras religiões, isoladamente computados, não o ajudarão a tanto.

*DESEMBARGADOR APOSENTADO DO TJSP, FOI SECRETÁRIO DA JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO.

O Estado de São Paulo

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