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domingo, janeiro 02, 2022

Há 30 anos




Na antiga URSS o medo era de tal maneira forte e entranhado que as leis podiam dar-se ao luxo de ser tão democráticas e benévolas como agora as proclamações do Secretário-Geral das Nações Unidas. 

Por Jaime Nogueira Pinto (foto)

Há trinta anos, no dia de Natal de 1991, às 19h32, hora de Moscovo, a bandeira vermelha descia na frontaria do Kremlin e era substituída pela bandeira tricolor da Rússia.

Gorbachev anunciava publicamente que abandonava a liderança da União Soviética e que cedia os seus poderes, na Federação Russa, a Boris Yeltsin. Melancolicamente, lembrava os seus esforços reformistas e pacificadores que, entretanto, tinham levado ao fim do Regime. No dia seguinte, a Câmara Alta da URSS, o Soviete Supremo, reconhecia e referendava esses factos.

Em 69 anos, e com muita culpa expiada e por expiar pelo caminho, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas ficava muito aquém da prometida nova sociedade de eternos “amanhãs que cantam.”

A encarnação da alma da utopia comunista no corpo da velha Rússia começara por ser um desafio à própria ciência marxista da História.

O líder da revolução de Outubro não ficara à espera das condições objectivas que George Plekhanov, o pensador do marxismo russo, indicara como condições necessárias para uma revolução marxista: seguira a linha de aventureiros, como Sergei Nechaev e Peter Tkachev, que sustentavam que um pequeno grupo de revolucionários decididos podia assaltar e tomar o poder na Rússia, sem esperar pelo amadurecimento do capitalismo.

Plekhanov negava tal possibilidade. Ou melhor, admitia que, se tal sucedesse, o resultado não seria uma harmoniosa sociedade socialista, mas o advento de uma “casta socialista” que substituiria as elites czaristas, numa sociedade de “comunismo patriarcal e autoritário”. Mudava a casta, mas mantinham-se o jugo e a opressão. Lenine era, para ele, da “raça dos Robespierre”: se os bolcheviques tomassem o poder, iriam impor uma ditadura comunista. Plekhanov morreria de tuberculose em 1918, certo de que assim seria – e só vira o princípio do filme.

Terror e reféns

No Verão-Outono de 1918 começava o Terror Vermelho, com a liquidação de reféns “burgueses”, como represália pelos atentados contra personalidades bolcheviques. Depois do atentado contra Lenine, em Moscovo, e contra Moisés Uritsky, chefe da Cheka de Petrogrado, 1300 reféns “burgueses”, “inimigos de classe” detidos em campos de concentração, eram executados. Em Setembro-Outubro, mais de 10 mil desses reféns eram mortos pela Cheka, a polícia política bolchevique. Em poucos meses, o novo regime comunista tinha executado mais presos políticos do que o czarismo entre 1825 e 1917.

O terror sistemático marcou a natureza do partido e do regime que salvou. A globalização do comunismo e o receio, na Europa, de que se repetisse a história da Rússia, levaria a uma reacção autoritária preventiva e a uma progressiva militarização da política em Outubro de 1922, com a chegada ao poder, em Itália, do movimento fascista de Mussolini – que depois inspiraria, em versão apocalíptica, o “Reich milenar” de doze anos de Adolf Hitler.

A morte e o processo de sucessão de Lenine saldaram-se com o triunfo de Estaline, que manteve e reforçou o Grande Terror, nos anos 30, a partir do assassinato de Kirov. No pós-estalinismo, os comunistas da Rússia e de todo o mundo, incomodados com as acusações de violação dos direitos humanos, procuraram responsabilizar Estaline – um “homem mau”, um tirano perverso – pela corrupção e degeneração da utopia. O comunismo era bom, mas havia comunistas maus, ou comunistas que não eram bem comunistas ou que não eram comunistas convictos. Só que Estaline era um comunista convicto, como recentemente o vem comprovar o historiador britânico Geoffrey Roberts, em Stalin’s Library – A Dictator and his Books (com publicação prevista para Fevereiro de 2022, pela Yale University Press).

A profecia de Plekhanov realizou-se plenamente: estabeleceu-se uma tirania comunista imposta pelo terror e assistiu-se à substituição de uma elite privilegiada, a aristocracia czarista, pela classe dirigente ou “velha-guarda” do Partido – os privilegiados, cuja existência Yuri Slezkine descreve em The House of Government: A Saga of the Russian Revolution (Princeton University Press, 2017). Mas o novo privilégio instaurado era também ele temeroso da mão pesada de uma qualquer inquisição que, em nome da pureza revolucionária, lhe pudesse cair em cima. Como cairia, a partir de 1936 e dos processos de Moscovo, transformando o privilégio de alguns num calvário de humilhação, sofrimento, confissão e expiação.

Para vencer a invasão alemã, Estaline ressuscitou o patriotismo do povo russo e deu tréguas à Igreja Ortodoxa. No fim da guerra, pela força das armas, estendia o comunismo – misturado com a hegemonia russa – aos países de Leste, do Pacto de Varsóvia. E, em 1949, Mao ganhava a guerra civil e o poder na China.

O comunismo parecia imparável e o socialismo real aparecia como a utopia igualitária das versões da propaganda. Mas não. Era, afinal, uma autocracia, com uma classe política dominante, com o monopólio do poder, da informação, dos privilégios e uma polícia política que vigiava e punia a dissidência de pensamentos, palavras, actos e omissões. E na ausência de economia privada e de sociedade civil, como poderes independentes, era o poder político do Partido Comunista que tudo controlava. E, no entanto, a Constituição de 1936, a Constituição de Estaline, era generosa nas concessões de direitos humanos e poética na linguagem.

O medo era tão forte e entranhado na população, o medo geral dos dirigentes e dos dirigidos, dos de cima e dos de baixo, que as leis podiam então dar-se ao luxo de ser tão democráticas e benévolas como agora as proclamações do Secretário-Geral das Nações Unidas.

Com a morte de Estaline, após uma luta de oligarcas, o poder passou para Kruschev, responsável pela repressão do levantamento popular húngaro. Kruschev foi depois substituído por Brejnev, que governou quase 20 anos. Seguiram-se, em breves intervalos, Andropov e Chernenko. Em Março de 1985 chegou Gorbachev que, ao retirar o medo da equação num regime fundado no medo, levou ao colapso do comunismo e da URSS.

Primeiro, foi a sua doutrina de não-intervenção nos países satélites: ao contrário do que acontecera em Berlim, em 1953, em Budapeste, em 1956, e em Praga, em 1968, Gorbachev retirou aos líderes comunistas do Pacto de Varsóvia o apoio soviético para a repressão dos movimentos populares internos. Assim, as resistências da Polónia, com o Solidariedade, e da Hungria, ao abrirem as fronteiras no Verão de 1989, quebraram o tabu do terror. Depois, foi a separação de algumas repúblicas soviéticas. E finalmente, no contragolpe ao golpe dos ortodoxos do Verão de 1991, o poder na Rússia caiu.

Depois da queda, não faltaram sábios a proclamar a inevitabilidade do acontecido. Mas a verdade é que foram muito poucos os futurólogos que não eternizaram a URSS nas suas previsões. Emmanuel Todd que, em 1976, publicara em França La Chute Finale – Essai sur la décomposition de la sphère soviétique, foi a excepção. O livro de Todd constatava o fracasso da economia soviética e analisava as estatísticas oficiais que, mesmo que falseadas, não deixavam de revelar uma sociedade doente, com altos índices de suicídio, de mortalidade infantil, de alcoolismo.

Culpa, autocrítica, confissão de incorrecção, expiação

Além dos fracassos políticos, institucionais e económicos, a grande vulnerabilidade da utopia era ser, precisamente, uma utopia aplicada: um projecto de mudar pela força a natureza humana através de um sistema político. O projecto foi denunciado desde o início por grandes escritores: de Zamiatin, em Nós, a Bulgakov, em Margarida e o Mestre. Não havia eu, havia nós; tudo o que não era ideologia, pensamento correcto, linha do Partido, linha geral, não existia. A censura operava por fora – os bolcheviques tinham começado logo por tomar conta das tipografias e dos stocks e fábricas de papel e por controlar jornais e editores – mas operava também, ou sobretudo, por dentro, inculcando o medo, o sentimento de culpa, a interiorização da culpa, a autocensura, o ímpeto inquisitório ou de denúncia cruzada de quem saísse da linha correcta, da linha do Partido.

Para Nikolai Berdyaev, em As Origens e o sentido do comunismo russo (1937), as raízes da famosa autocrítica estalinista estavam na consciência do homo sovieticus e na tradição do arrependimento penitencial cristão:

“Nenhum povo do Ocidente viveu com tanta força as questões da penitência. Foi na Rússia, precisamente entre as classes ditas privilegiadas, que nasceu o tipo tão especial do ‘gentilhomme repentant’. Arrependido, não de uma falta cometida pessoalmente, mas da falta geral, do pecado social.”

Há exemplos famosos na história da literatura russa do século XIX: Nicolau Gogol queimou o segundo volume de Almas Mortas por ordem do padre Matvei Konstantinovsky, seu confessor; e Tolstoi, no final da vida, exprimia uma espécie de complexo de culpa de classe, de culpa social, perante os camponeses.

Com a ortodoxia do socialismo e os seus inquisidores a manipularem a burocracia das consciências no “paraíso na terra” em nome do proletariado, os intelectuais e os dirigentes comunistas acusados de desviacionismos exacerbaram esses sentimentos. Alguns, como os condenados dos processos de Moscovo, fizeram-no sob tortura e para tentar salvar as famílias; mas outros, muitos, interiorizaram o escrúpulo de correção, pedindo perdão pela sua condição pequeno-burguesa. Outros ainda, como o famoso Isaac Bábel, foram ao ponto de renegar expressamente as suas obras principais.

Nos tempos finais da URSS, em plena Perestroika, Vitali Chentalinski, escritor e jornalista, conseguiu ter acesso aos processos dos intelectuais e escritores nos arquivos da Lubianka e publicou um livro sobre o tema, em França, em 1993. O livro, Les Esclaves de la Liberté – Dans les Archives Litterairers du KGB, conta a saga dos escritores presos e dos romances, diários íntimos e correspondência apreendidos e destruídos. A autocrítica de Isaak Bábel, o romancista do regime conhecido pelos seus clássicos Cavalaria Vermelha e Contos de Odessa, é particularmente eloquente:

“Cavalaria Vermelha serviu de pretexto para exprimir o meu péssimo humor, que não tinha nada que ver com o que se passava na URSS. Daí as descrições forçadas da crueldade e do absurdo da guerra civil, a introdução artificial de elementos eróticos, uma sucessão de episódios turbulentos e chocantes; bem como o total encobrimento do papel do Partido na organização da grande Unidade do Exército Vermelho que foi o Primeiro Exército de Cavalaria, formado por cossacos que não estavam ainda eivados da consciência proletária (…) Quanto aos meus Contos de Odessa, reflectiam o meu desejo de me afastar da realidade soviética, de opor ao trabalho da sua construção quotidiana o mundo semi-mítico e pitoresco dos bandidos de Odessa, cuja descrição romântica levaria, involuntariamente, a Juventude Soviética a imitá-los.”

Em Abril de 1939, preso e em busca de expiação, de purificação e de perdão, Bábel, o “engenheiro de almas” socialista, fazia um derradeiro apelo epistolar ao chefe da NKVD, o terrível Laurenti Béria:

“Cidadão Comissário do Povo, durante a instrução, sem me poupar, movido unicamente pelo desejo de purificação, contei os meus crimes (…) Peço-lhe também que me autorize a esboçar o plano de um romance relatando o itinerário (…) que me levou à perdição e aos crimes contra a pátria socialista. Este livro surge no meu cérebro com um rasgo penoso e impiedoso. Sinto que a dor da inspiração e das forças me voltam. E queima-me a sede de trabalho, a sede de expiar, a sede de estigmatizar esta vida que passei de maneira incorreta!”

Não lhe valeu de muito. Depois de 72 horas de interrogatório, sob tortura, acabaria por confessar-se membro da organização Trotsky e recrutado por André Malraux para espiar para o governo francês.

Guardaram-no no Segredo durante meses, reservando-o, talvez, para um qualquer auto-de-fé do socialismo proletário, um processo de intelectuais dissidentes, igual ao dos políticos e dos militares. Mas, a 26 de Janeiro de 1940, foi subitamente julgado, condenado à morte e executado na madrugada seguinte.

A sua morte foi mantida em segredo durante anos e a sua obra só seria reeditada na URSSS depois do Degelo kruscheviano.

Hoje, trinta anos depois do anúncio do fim da União Soviética, e perante a afirmação de uma nova ortodoxia da utopia e de uma nova linha geral da correcção, o espírito e os métodos dos processos estalinistas parecem ter renascido das cinzas ou dos arquivos da Lubianka, com os restauros que o tempo e as circunstâncias impõem, para eivar dos novos dogmas o cidadão comum, transformando-o num censor, num auto-censor, num informador, num delator exemplar. Na nova burocracia da correcção, os comissários políticos globais podem ser mais fluidos, mas revelam-se igualmente hábeis na selecção dos desvios à linha geral, na identificação das incorrecções, dos incorrectos e das vidas incorrectas, na instrumentalização da culpa, da culpabilização, da censura e da autocensura, na instigação à confissão, à acusação, à delação e à condenação. E no silenciamento de tudo o que possa contradizer as declarações humanitárias e as flores de retórica do melhor dos mundos.

A História ensina-nos que é assim que se queimam memórias, escritos, livros, vidas; que é assim que se verga e mata o espírito e se seca o pensamento, sem que neutros e inclusivos amanhãs cantem. Mas o que é a História para quem parece querer voltar a fazer do passado tábua-rasa?

Observador (PT)

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