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domingo, janeiro 02, 2022

Entrevista - Fukuyama: "A decadência dos EUA vai aumentar nos próximos anos".




Para o intelectual conservador Francis Fukuyama, pode surgir uma "nova cepa" do populismo de direita no mundo. Ele afirma, também, que a reeleição de Bolsonaro seria "destrutiva" para o Brasil, assim como a volta de Lula. 

Três décadas após decretar “o fim da História”, o especialista em relações internacionais Francis Fukuyama, da Universidade Stanford, uma das vozes conservadoras mais conhecidas da academia americana, vê um 2022 marcado pela crescente decadência dos EUA, pelo avanço do totalitarismo representado pela aproximação de China e Rússia, pelo aumento da polarização política na América Latina e pela emergência de uma nova cepa do populismo de direita, alimentada por um conceito enviesado de liberdade de expressão, como reação à indefinição sobre o fim da pandemia da Covid-19.

“O fim da História e o último homem” foi escrito logo após o desmonte do comunismo na Europa Oriental, com a tese de que as democracias liberais se solidificariam mundo afora, o que não aconteceu. Como vê os EUA no atual tabuleiro político planetário?

Houve um inegável declínio da influência americana. As razões são muitas, mas as principais se relacionam com os erros políticos cometidos por Washington de lá para cá, especialmente a invasão do Iraque e a crise financeira global de 2008. Foram dois momentos históricos que desacreditaram nossas elites e as ideias que as guiavam. Hoje a maior fonte de fraqueza dos EUA é o grau jamais visto de polarização política em um país cada vez mais partido. A política externa, especialmente, carece do mínimo de consenso entre democratas e republicanos, crucial para a defesa de uma ordem global democrática. Nosso retrato como país hoje é o de uma entidade anômala e isso me faz crer que a decadência americana vai aumentar nos próximos anos.

Quais serão os maiores pontos de tensão no planeta em 2022?

Certamente Ucrânia e Taiwan, e não apenas no próximo ano. Estes serão os dois centros nervosos da disputa entre as democracias liberais e os regimes totalitários. Se os EUA nada fizerem para proteger Kiev, a decadência americana será ainda mais acelerada. O que deveríamos fazer no caso da Ucrânia é parar de considerar uma possível entrada do país na Otan e tornar mais difícil uma invasão russa, com ações concretas, com apoio militar que ofereça aos ucranianos a possibilidade de se defenderem de uma agressão militar. Pequim está prestando enorme atenção a como o mundo ocidental responderá a uma possível invasão. Se não enfrentarem Putin, uma invasão de Taiwan se torna mais possível. A conexão Pequim-Moscou é definitivamente um movimento chave no xadrez global. Ficou mais nítido o quilate de ordem mundial que eles gostariam de estabelecer.

Depois de quase dois anos de pandemia, o que devemos esperar de 2022?

O efeito mais palpável da pandemia foi o aumento de nossa dependência do universo digital, nos negócios, na educação, nas conexões pessoais, e estas mudanças vieram para ficar. A verdade é que aprendemos e gostamos da tela entre nós. Observaremos uma pressão cada vez maior para que esta extensão de nossos corpos e mentes se perpetue, com suas consequências, positivas e negativas. Mas o que não sabemos ao certo, especialmente do meu ponto de observação [com um forte movimento antivacina, os EUA ainda convivem com alto número de mortes por Covid-19], é quando a pandemia irá de fato acabar. O que posso cravar de antemão como uma das características de 2022 é justamente essa incerteza. A pandemia está se estendendo mais do que os mais pessimistas previam. O que mais me preocupa são as consequências políticas dessa indefinição.

Pode dar exemplos?

A extensão da pandemia pode desestabilizar politicamente países, incluindo os nossos. Precisamos observar o efeito que ela terá no curso dos populismos. Constatou-se numericamente uma relação clara entre governos comandados por populistas e a dimensão da tragédia da Covid-19. Houve, como consequência, o enfraquecimento de governantes como Donald Trump e Jair Bolsonaro. Porém, não me iludo: 2022 seguirá seu curso, as pessoas se esquecerão, mês a mês, semana a semana, da tragédia. O Ano Novo começa com um sentimento de esgotamento e ansiedade compreensível: passamos 2020 e 2021 usando máscaras, isolados, nos vacinando. O que temo é que a reação, especialmente à direita, contra as medidas sanitárias, modifique o cálculo político, oferecendo a oportunidade de um novo tipo de populismo, calcado em uma falsa ideia de liberdade de expressão.

A discussão em torno da vacinação de crianças contra a Covid-19 que se vê hoje no Brasil já é um reflexo desta nova cepa de populismo de direita?

Sim. É legítima a preocupação dos pais em o Estado usar a emergência sanitária para interferir em decisões que afetam as famílias. Mas a realidade é bem outra e mais sinistra. Cultua-se a desconfiança do conhecimento científico e há a invenção e divulgação de teorias da conspiração sobre agências de vigilância e a indústria farmacêutica.

Em 2018, o senhor argumentou em “Identidades: a exigência da dignidade e a política do ressentimento" que há uma conexão direta entre a defesa feita por progressistas das políticas identitárias e a ascensão do populismo de direita. As democracias liberais seguirão em risco?

Sim. Em abril lanço “Liberalism and its discontents”, examinando como as pessoas foram ficando mais infelizes com o modelo de democracia liberal nos últimos 50 anos. A nova esquerda combate diversos tipos de desigualdade, não apenas os de classe e econômicos, mas os de gênero, raciais e de orientação sexual. E isso seguirá alimentando uma direita decidida a enfrentar o que percebe ser um ataque a suas tradições culturais e religiosas.

O Brasil irá às urnas este ano e as pesquisas indicam uma polarização entre forças que representam, também, estas tensões. Como o senhor vê uma disputa entre Bolsonaro e o ex-presidente Lula?

A reeleição de Bolsonaro seria o equivalente a uma segunda Presidência de Trump nos EUA, a celebração coletiva de um líder muito fraco e incompetente. Um segundo mandato de Bolsonaro será ainda mais destrutivo para a democracia brasileira. A escolha oferecida, no entanto, me parece estar longe do ideal: faz todo sentido votar em qualquer pessoa que não se chame Bolsonaro, mas Lula representa um passado recente que inclui escândalos sérios e volumosos de corrupção. A disputa também parece acentuar a diminuição da importância dos centros e o fortalecimento da polarização, dos extremos, como aqui nos EUA, que parece ser uma tendência na América Latina para os próximos anos, como observamos no Peru e no Chile. Isso me preocupa muito.

Mas Gabriel Boric se aproximou do centro no segundo turno das eleições chilenas e a política ambiental teve protagonismo em seu programa de governo. A consciência verde não terá o poder de aproximar os extremos?

Ela deveria, mas ainda não vejo no horizonte o combate lógico e urgente ao aquecimento global como fator na redução da polarização política. Em 2022, estaremos distantes de um consenso sobre como preservar a natureza sem explorar de forma irracional as riquezas naturais. E muito ocupados discutindo tópicos como o aumento de impostos, se é direito ou dever sermos vacinados e o culto à desinformação para nos unir na defesa do verde.

Sobre a disseminação de fake news, o senhor acredita que haverá mais pressão pela vigilância das big tech?

Este é um processo inevitável e não se refere apenas às redes sociais, mas a todo universo digital. Houve uma multiplicação de universos alternativos em que as pessoas discordam não apenas a respeito de conceitos mas de fatos. Precisamos encontrar uma maneira de regular o mundo livre das redes sem bater de frente com valores intensificados pelas próprias características centrais do mundo digital, como a liberdade de expressão. Tão importante quanto denunciar as fake news será construir uma maneira legal para fazê-lo sem assumir o manto do censor, do totalitário. Este ser á um dos desafios centrais de 2022 e dos próximos anos.

O Globo

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