Conrado Hübner Mendes
Folha
Numa passagem da “Odisseia”, de Homero, conhecida como “Ulisses e as Sereias”, o herói, navegando de volta para casa depois da guerra, recebe conselho de uma feiticeira. Ela lhe sugere não ouvir o canto das sereias, cujo feitiço faz os homens perderem o senso e se jogarem à morte.
Ulisses manda seus marinheiros taparem seus ouvidos com cera e lhe amarrarem ao mastro para que só ele possa ouvir, mas não caia no encanto. “Se eu implorar para que me libertem, devem me amarrar com mais força.” Num momento de serenidade, sabendo do risco e da fragilidade da razão, estabeleceu para si limites a sua liberdade num evento futuro específico.
PACTO DE ULISSES – A imagem do “Pacto de Ulisses” serviu de metáfora para explicar e justificar certas instituições jurídicas e políticas. Elucida, por exemplo, o espírito do constitucionalismo e o papel de constituições: amarrar a democracia ao mastro que segure as paixões majoritárias, a taquicardia, as emoções primárias, os instintos primitivos.
Às vezes, menos liberdade é mais. Assim é a liberdade constitucional. (Leia Jon Elster sobre Ulisses e autocontenção.)
Ajuda também a entender instituições comprometidas com a imparcialidade, que precisam pairar, tanto quanto possível, acima do conflito entre governo e oposição, maiorias e minorias, aliados e adversários. Precisam se despolitizar, permanecer despolitizadas e se proteger das tentações.
O MAIOR DESAFIO – Fazer instituições de Estado funcionarem como instituições de Estado é a maior operação republicana numa democracia. É uma façanha, uma busca permanente e falível. Portanto, uma conquista provisória, nunca definitiva. Atinge-se em graus, não na exata perfeição. São imprescindíveis regras constitucionais que tracem a arquitetura dessas instituições e mecanismos de controle ético e jurídico de seus agentes.
Forças Armadas, Poder Judiciário, Ministério Público, polícia, o Itamaraty são exemplos mais evidentes. Não basta se proclamar instituição de Estado, é necessário parecer instituição de Estado, pôr em prática seus princípios e controlar violações. Sancionar, sobretudo, agentes que delinquem.
Tivemos o nosso Ulysses particular. Declarou ter “ódio e nojo da ditadura” e ajudou a escrever a Constituição mais democrática e liberal da história brasileira. Deixou escapar defeitos que as gerações seguintes ainda não foram capazes de consertar.
BRECHAS DA LEI – Entre os defeitos estão avenidas amplas demais para que um presidente qualquer as capture e um autocrata qualquer as imploda. A técnica politizadora de Bolsonaro envolve promessas de cargos futuros, favores orçamentários e até autorização para matar em troca de servilismo e leniência.
Sem contar os incentivos para que agentes de Estado usem de sua instituição como trampolim para carreira eleitoral (sem regras rigorosas de quarentena).
Na odisseia bolsonarista, um mito tosco e letal convida instituições de Estado a se corromperem impunemente. Tão ciosas de sua própria honra, vendem-se por qualquer teto duplex (truque que rompeu o teto constitucional e quase dobrou salário de membros da família militar, como Heleno, Braga Netto, Ramos e Bolsonaro). A cooptação pelo bolso se vê em aumentos desmedidos de remunerações, gratificações e orçamento.
OPÇÃO ERRADA – O Sereio brasileiro tem seus generais, sua polícia, seu procurador-geral, seu advogado-geral, seu ministro da Saúde e gabinete paralelo da saúde na pandemia. Não hesitam em seguir caprichos do presidente, pouco importam a orientação legal, as normas de decoro, o sentido da política pública e recomendações da ciência. O descolamento entre o pessoal e o institucional tornou-se impossível.
Pazuello, esse antiépico, não se amarrou ao mastro. Beijou o Sereio e se amarrou na moto para passear pela orla carioca. Mentiu na CPI, subiu no palanque e violou a ética militar com estilo e espalhafato. Pode ser “punido” com a reserva.
Pazuello e a instituição que encarna, as Forças Armadas brasileiras, seguem juntos na garupa de sua ninfa repugnante. Não sem antes mandar a feiticeira para o porão.