por Mari Leal
A história da recém-nascida abandonada em um banheiro do terminal de ônibus da Estação Acesso Norte, em Salvador, na quarta-feira (26) (reveja), traz para o centro da discussão a ausência da figura paterna, sobretudo no desfecho jurídico. A mãe, uma mulher de 27 anos, foi presa em flagrante no dia seguinte (27), com base no artigo 133 do Código Penal Brasileiro (CPI), por abandono de incapaz (reveja). Ela está à disposição da Justiça e aguarda audiência de custódia. Na delegacia, a mulher contou que o pai sabia da existência da criança e esteve com ela na saída da maternidade, momento em que tentou demovê-la da intenção de se “livrar da criança” (reveja).
“O pai da minha filha é casado, não quis assumir o relacionamento comigo, me disse para eu criar a filha sozinha e que ele ajudaria em segredo. Que não estava disposto a romper a relação dele para ficar comigo”, disse a mãe em depoimento.
A advogada Mariana Regis, especializada em Direito das Famílias com perspectiva de gênero, pontua que, considerando a legislação, o pai, neste caso, não poderia ser responsabilizado por abandono de incapaz porque se exige que o incapaz esteja sob cuidado, guarda ou vigilância da pessoa que o abandona. O que pode ser pontuado, segundo ela, é a ocorrência de “negligência”, a partir de uma interpretação do Art. 227 da Constituição Federal e do Art.5º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Foto: Bahia Notícias
“Eu penso que o tratamento legal está distante do que seria justo neste caso. Então, fazendo uma interpretação direta desses dispositivos, vejo um encaixe entre a situação e o dever previsto. Mas, infelizmente, nem o ECA, nem o Código Penal tipificam a negligência como crime, não estabelecem pena”, diz. Mariana destaca ainda que, caso a investigação conclua que o pai, de fato, sabia que a mãe iria abandonar a criança no banheiro, em situação de risco, a situação pode mudar, pois passa a ser configurada a “omissão”, já que haveria ciência sobre o fato.
Foto: Bahia Notícias
PAIS OMISSOS
Um levantamento realizado pela Associação Nacional dos Registradores Civis de Pessoas Naturais do Estado da Bahia (Arpen-BA) concluiu que, das 88.118 crianças nascidas e registradas em cartórios da Bahia nos primeiros seis meses de 2020, 6,77% não têm o nome do pai na Certidão de Nascimento. A porcentagem representa 5.966 baianos registrados apenas com o nome das mães (reveja).
Sob a perspectiva de gênero, Mariana propõe uma reflexão a partir de aspectos sociais conjunturais, os quais se apressam em conferir “culpa” à mulher nas situações mais diversas. “Os homens têm licença para assumirem os filhos ou não. Têm licença para criar, educar ou não. Uma ‘liberalidade’ que não é garantida às mulheres. Se essa mulher tivesse sido amparada pelo pai da criança, teria sido essa sua ação?”, questiona.
“Vejo o pai como corresponsável, sim. Mas a legislação não trata da mesma forma, salvo se ficar comprovado que ele tinha ciência do que ela faria. Nem sempre o que é legal, é justo. Se a gente pensar que um pai só é obrigado pelo Judiciário a pagar pensão pros filhos a partir da decisão judicial que a fixar, fica bem claro como o Estado legitima o abandono paterno, avaliza a conduta do pai irresponsável, omisso.”
A reflexão da advogada dá conta da ideia de “naturalização da irresponsabilidade paterna”, termo recorrente nos debates pautados por movimentos sociais de pautas feministas e de enfrentamento ao machismo, pesquisadores, pesquisadores e especialistas focadas nas relações de gênero e as interseccionalidades. “A verdade é que se trata de uma conduta violenta que causa graves danos não somente aos filhos e filhas, mas às mães. ‘Quem pariu Mateus que balance’, diz o dito popular”, reflete Mariana.
E acrescenta: “Temos uma cultura de abandono paterno e uma cultura de exploração e violência contra mulheres. Casos como esse refletem essa cultura e são oportunidades para a gente refletir o que a maternidade representa para uma mulher. A construção desta maternidade é extremamente opressora, pois o abandono e irresponsabilidade paterna são naturalizadas socialmente, então o que resta para uma mãe? Arcar com toda carga de gestar e trazer um filho ao mundo. Com todas as perdas e renúncias. Para o homem, sempre o privilégio, o direito de escolher se vai ser pai, como e quando exercerá essa paternidade”.
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