Por Renato de Moraes
A revogação total das normas dispostas na Lei de Imprensa — a Lei 5.250/67 —, propugnada no voto do ministro Carlos Britto, representará um avanço às liberdades públicas e individuais só na opinião de quem não vivencia a prática forense.
Promulgada, sim, sob o império de um regime autoritário, vários de seus dispositivos beneficiam, processualmente, os profissionais da informação, regulando, por exemplo, a prescrição da pena “no dobro do prazo em que for fixada” (artigo 41). Em relação ao prazo decadencial, na legislação cuja revogação se sinaliza, ao queixoso se confere o prazo de três meses para exercer seu direito, enquanto, no Código Penal é de 180 dias a baliza temporal.
A própria responsabilização do autor do escrito apodado de injurioso, difamante ou calunioso, encontra limitações jurisprudenciais que, não raro, inviabilizam a persecução criminal.
A revogação total, a pretexto de que a pena cominada, em abstrato ao delito de calúnia — detenção de seis meses a três anos, conforme artigo 21 —, alcança patamar superior ao fixado no Código Penal — conforme artigo 138, de detenção de seis meses a dois anos —, à luz de um julgamento criterioso, conforme o artigo 59 do Código Penal, não se justifica.
Na realidade dos tribunais, no lugar de um impulso os jornalistas sofrerão um revés, porque se remeterá a eventual conduta abusiva aos regramentos do Código Penal, não passando de engenhosa retórica certa passagem da sustentação oral publicada no jornal O Globo, do deputado Miro Teixeira, de que “requeiro que desapareça a possibilidade de pena a jornalista ou responsável pela publicação sempre que houver causalidade com o direito do povo, e que possamos ter um país em que o povo possa controlar o Estado e não que o Estado possa controlar o povo, como temos hoje” (2/4/2009, p. 3).
É induvidoso que se reveste de boa intenção o voto proferido pelo ministro Carlos Britto, segundo quem “a imprensa livre contribui para a realização dos mais excelsos princípios constitucionais” ou “em matéria de imprensa, não há espaço para meio-termo ou contemporização. Ou ela é inteiramente livre ou dela já não se pode cogitar senão como jogo de aparência jurídica” (2/4/2009, p. 3). Sobre tais assertivas, ninguém voltado à intransigência com a mitigação de valores caros à democracia pode dissentir.
Ocorre que, na prática forense, com a revogação total, o tiro pode sair pela culatra. O que mais impressiona é o aplauso incontido dos próprios meios de comunicação, como se impunes fossem ficar os profissionais que transgrediram o texto dimanado dos artigos 138, 139 e 140 do Código Penal, malferindo a honra e a imagem, cuja inviolabilidade resguarda a Lei fundamental em seu artigo 5º, inciso X.
Tem-se ainda a preocupação pertinente, já externada pelo ministro Gilmar Mendes, quanto ao direito de resposta, pontuando, em entrevista, que “o mundo não se faz apenas de liberdade de imprensa, se faz também da liberdade da pessoa humana” (idem, p. 3).
Cuida-se de um voto conceitual irrepreensível, mas de cunho simbólico, podendo, sob o ângulo processual, se confirmado pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, ir de encontro aos interesses de jornalistas que vierem a amargar o dissabor de responder a um processo penal.
Sabe-se que a liberdade de imprensa, valor imensurável, em uma realidade democrática como a que se vive atualmente no país, constitui pressuposto do direito à informação, “este, sim, o objetivo precípuo buscado alcançar”.[1]
Inerente, portanto, aos órgãos encarregados de informar a sociedade, o dever de compromisso com a responsabilidade, ao divulgar notícias, principalmente quando atingem a honra, a imagem, enfim, a dignidade de terceiros.
O abuso e a irresponsabilidade no exercício da liberdade de imprensa revelam-se tão nocivos à sociedade quanto atos veiculados, supostamente delituosos, cujo estrépito, muitas vezes, decorre apenas da criatividade maledicente do jornalista, ávido de vender notícia e não de informar.
Nessas hipóteses, exsurge a necessidade de satisfação pelos danos causados por aleivosias assacadas, publicamente, que não contêm, em si, o propósito de informar, convindo recordar clássica passagem de Zuenir Ventura, onde ressaltou: “O poder da imprensa é arbitrário e seus danos, irreparáveis. O desmentido nunca tem a força do mentido. Na Justiça, há pelo menos um código para dizer o que é crime; na imprensa, não há norma nem para estabelecer o que é notícia, quanto mais ética”. [2]
[1] Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho, “Estudos Jurídicos”, coordenação James Tubenchlak e Ricardo Bustamante, 1992, 1ª ed., vol. 4, p. 334.
[2] apud Antonio Carlos Barandier, “As garantias fundamentais e a prova: e outros temas”, RJ, Lumen Juris, 1997, p. 3.
Fonte: Conjur
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