Editorial
A única coisa mais chocante do que um abuso que vem sendo praticado na Assembleia Legislativa de São Paulo - revelado em nossa edição de ontem - foi a "explicação" que o presidente da Casa, deputado Barros Munhoz, deu para ele.
O abuso chocante, verdadeiro requinte de amoralismo, é a Assembleia manter gabinetes especiais para deputados que já ocuparam os cargos de presidente, primeiro e segundo secretários da Mesa! Isso lhes dá direito a carro oficial, mais cinco auxiliares em cargos de confiança para o ex-presidente e quatro funcionários para cada ex-secretário. Além disso, esses ex-dirigentes mantêm por dois anos os gabinetes, com plena dotação de verbas e de pessoal, a que teriam direito como simples deputados. Ou seja, têm gabinetes e auxiliares em dobro.
E é de embasbacar a "explicação" dada pelo presidente Munhoz para o privilégio vigente desde 2003: "É difícil revogar conquistas alcançadas. Não vou entrar no mérito de se deve ter ou não. Quando isso foi criado lá atrás a justificativa era de que funcionaria como uma transição, porque a diferença de estrutura de um gabinete comum com os da Mesa Diretora é brutal" (grifo nosso).
Quer dizer, o presidente considera a descabida regalia dos ex-presidentes e ex-secretários da Assembleia uma "conquista alcançada", como se fosse um direito inerente ao Estado Democrático. Mas depois vem a melhor parte: é preciso haver uma transição, porque a diferença de qualidade dos gabinetes dos membros da Mesa e dos deputados "comuns" é tão "brutal" que, para evitar os efeitos traumáticos da perda das regalias, os ex-presidentes e ex-secretários precisam de dois anos para que possam adaptar-se à vala comum em que estão seus colegas de parlamento. Vala comum - diga-se de passagem - forrada de privilégios com que não podem sonhar cidadãos comuns.
Com tudo o que já se disse, denunciou e apurou sobre os abusos praticados na Câmara dos Deputados e no Senado Federal - de castelo de R$ 25 milhões e residência portentosa não declarados à Receita Federal a uso da "verba indenizatória" em gastos privados -, ainda não se adotou, em Brasília, essa invenção indecorosa do Legislativo paulista. Mesmo assim, o presidente Barros Munhoz ainda considera a Assembleia de São Paulo um "modelo" para o resto do País. Deixem-se de lado os números que envolvem os gastos parlamentares de São Paulo - tais como os R$ 569,3 milhões que a Assembleia custou aos contribuintes paulistas em 2008, sendo R$ 471,1 milhões só com pessoal. Não há avaliações comparativas com outras Assembleias estaduais que nos permitam julgar se são exagerados ou se de fato a Assembleia paulista "é a que menos gasta", como garante o deputado Barros Munhoz. As suas "justificativas" para a permanência dos gabinetes especiais depois de expirados os mandatos de membros da Mesa e, sobretudo, a sua nenhuma disposição para acabar com as "conquistas alcançadas" por suas excelências já dizem tudo.
Chega a ser assustadora a naturalidade com que um político - que não é neófito na vida pública nem possui baixa escolaridade -, colocado à frente do Legislativo do Estado mais importante do País, com amplo apoio de seus pares, admite a permanência de um privilégio gritantemente imoral, sem qualquer justificativa relacionada com o interesse público - mas apenas explicado por imaginárias necessidades psicológicas de "adaptação" para os que perdem o privilégio de mando na vida parlamentar. Trata-se, em resumo, de um exemplo arrasador de um vício crônico de nossa formação histórica - como a descreve Raymundo Faoro em seu livro famoso, Os Donos do Poder, que acaba de ser reeditado: o patrimonialismo, que é a não diferenciação do interesse público do privado, que invariavelmente conduz ao uso abusivo dos recursos extraídos do esforço dos contribuintes.
Quando indagado se está disposto a iniciar um debate na Casa para acabar com esses gabinetes (dos ex-dirigentes), o presidente Munhoz desconversou: "É, sem dúvida, uma questão a ser discutida pela Casa. Mas acho também que isso tem que ser feito pela próxima Mesa." Eis um exemplo inédito de alguém que acaba de assumir a chefia de um Poder estadual e revela que a moralização desse Poder só será possível quando deixá-la.
Fonte: O Estado de S.Paulo (SP)
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